Foi, em 2016, um dos nossos livros de eleição, ficando apenas atrás de “O Luto é a Coisa com Penas”, de Max Porter, e de “O Czar do Amor e do Tecno”, de Anthony Marra. Falou-se, a propósito de “Manual Para Mulheres de Limpeza”, em descoberta literária do ano, ou no segredo mais bem guardado da literatura americana.
O livro reunia o melhor (43 das 77 histórias que escreveu ao longo da vida) da obra de Lucia Berlin, nascida em 1936 no Alasca e desaparecida em 2004 no dia do seu aniversário, na Califórnia, para onde se mudara poucos anos antes para viver perto dos seus filhos. Alguém cuja vida tem ingredientes mais do que suficientes para falarmos do nascimento de um culto: a infância passada em comunidades mineiras do interior do continente americano; a adolescência sofisticada em Santiago do Chile; a mudança constante de casa; os três casamentos falhados; os variadíssimos empregos que teve para criar os quatro filhos – enfermeira, telefonista, mulher de limpeza e professora de escrita criativa (na década de 90 foi promovida a professora associada da Universidade de Colorado Boulder; o alcoolismo. Temas que atravessavam todos os contos dessa colectânea, e que estão também presentes em “Anoitecer no Paraíso” (Alfaguara, 2018), um volume preparado pelo filho da autora e que apresenta contos até agora inéditos em português.
No prefácio a esta edição, Mark Berlin, o primeiro filho de Lucia falecido em 2005, exalta a vida da mãe na senda de um mito do rock n` roll, falando de episódios “como quando ela deu boleia a Smokey Robinson na Central Avenue, em Albuquerque, a fumar uma ganza, enquanto se dirigiam para o concerto dele no Tiki-Kai Lounge”. E, igualmente, falando do carácter autobiográfico das histórias da mãe, ainda que tenham sido embelezadas e moldadas ao ponto de a memória não saber já se realmente existiram. “A história é que conta”, diz a certa altura Mark, repetindo aquilo que ouviu da boca de Lucia Berlin.
Em menos de trezentas páginas, o leitor vê-se conduzido pelo mundo em constante rebuliço de Lucia Berlin, que faz de um gesto quotidiano um momento que apetece gravar na pedra ou num tronco de árvore. Há crianças metidas num esquema para lá da pirâmide, vendendo rifas para um prémio que não existe; conhece-se “a terrível beleza do fumo ou do vidro brilhante”; dá-se de caras com uma Lolita de 14 anos, perdida no álcool e descansando à sombra do anarquismo chileno; recorda-se a curta vida de Michael Templeton, pela voz de alguém que acha os funerais divertidos e empolgantes os edifícios a arder; engravida-se em nome do não recrutamento para a Guerra da Coreia, ou casa-se por conveniência deixando de lado o afecto; evitam-se encontros natalícios ou familiares com o amparo de Jack Daniels.
Do Texas ao Chile, do México a Nova Iorque, o leitor acompanha Lucia Berlin e a sua alquimia literária, fazendo a escuridão brilhar e transformando a melancolia em frases como esta: “Momentos perdidos. Uma palavra, um gesto, podem mudar uma vida inteira, podem quebrar tudo ou torna-lo inteiro”. A rotina da vida transformada num épico literário, em contos para ler e guardar na mesa-de-cabeceira.
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