É com sentimentos contraditórios, algures entre a vergonha e o orgulho, que o narrador de “A doença da felicidade” (Abysmo, 2015) decide «relatar a pequena e a grande história» de seu pai, naquele que será um tremendo ajuste de contas literário: uma falsa biografia, um prenúncio de romance, escrito por um filho abandonado a partir dos cadernos que o pai lhe deixou no lugar de afectos.
Manuel de Sousa Correia Bullard, pai do narrador, foi o cientista que cometeu a incrível proeza de descobrir a felicidade. Com 25 anos, decide abandonar mulher e filho – na altura com 5 anos – e emigrar para os Estados Unidos, a terra de todos sonhos. Especialista em biologia molecular, exerce neurologia e psicologia clínica, esquecendo Portugal antes mesmo da chegada da revolução dos cravos.
Enquanto a família esperava o seu regresso, Manuel conhece Elisabeth Bullard, uma das mais ricas mulheres de Nova Iorque, fazendo dela a sua nova mulher – a verdade acabaria por surgir apenas no 13º aniversário do narrador. Olhando a ciência a sua única praia, Manuel define o seu grande objectivo e móbil de vida: descobrir e isolar a substância que produzia a felicidade – a eudaimonina -, para curar o homem dessa temível doença comparada à diabetes.
Em 2005, à beira da morte por cancro no cólon, Manuel deixa um espólio escrito ao filho – vencedor do Prémio Saramago em 1999 -, vários cadernos com apontamentos, pedindo-lhe que os organize e faça deles um livro que «alertasse as pessoas para o terrível problema de saúde pública que é a felicidade.»
Após a apresentação da doença, assim como de um primeiro contacto com as diferenças entre a felicidade e o querer ser feliz, o autor oferece uma breve história da felicidade, numa viagem que começa no Antigo Egipto antes de partir para um passeio filosófico que visita Platão, Sócrates, Aristótoles, Leibniz, Kant, Mark ou Nietzsche. O livro, esse, torna-se um manual de como tolher a felicidade, dirigido a médicos ou, simplesmente, leigos da matéria.
À semelhança do que havia acontecido com “A máquina do mundo”, Paulo José Miranda atira o leitor para dentro de um labirinto, trancando a porta da entrada à chave e obrigando-o a encontrar a saída depois de uma longa peregrinação com ar de psicanálise – a do autor e, principalmente, a do leitor. Apesar de não perder de vista o hemisfério político, Paulo Miranda troca agora a violência pela felicidade, levantando questões universais que nos movem a todos: o que é o amor? O que é o medo? O que é o ciúme?
Mas nem só labirintos se faz a ponte com “A máquina do mundo”. O leitor e a sua sanidade são de novo postos à prova através de um final desconcertante que, no caso de “A doença da felicidade”, pode levar a (falsos) caminhos atravessados pelo espectro do machismo ou, quem sabe, da irrecusável – e irreparável – hereditariedade. A provocação, essa, está lá.
Escritor de pontas soltas, criador de enigmas e implacável manipulador de sentimentos, Paulo José Miranda permanece como um dos mais intrigantes escritores a escrever, com mestria, na língua de Camões.
Sem Comentários