Talvez se possa dizer, sem correr grandes riscos, que o actual território de eleição da britânica Rachel Cusk é o da ambivalência. Se, durante uma dezena de anos, a sua escrita tocou temas como o feminismo e a sátira social, Cusk conseguiu a certa altura chocar meio mundo literário, com relatos autobiográficos sobre a maternidade e o divórcio em romances que dividiram águas – e cujas opiniões se extremaram entre a inovação e a desonestidade ou falta de ética.
Porém, como tudo na vida, a redenção acabou por acontecer, começando desde logo pelo seu país Natal. “Outline”, o primeiro livro de uma nova trilogia, foi lançado em 2015 – com edição nacional pela Quetzal dois anos depois -, mantendo um toque de autobiografia sem cair contudo na literalidade, ainda que Cusk mantivesse a costela Dexteriana no que diz respeito à caracterização das personagens.
“Trânsito” (Quetzal, 2018), publicado em Portugal no ano passado, é o segundo livro desta trilogia, onde acompanhamos a mudança de Fay e dos seus dois filhos para Londres, sentida como um regresso à casa de partida 15 anos depois.
Sente-se uma inquietação perante a ambivalência, seja pela necessidade de criar regras sociais enquanto se sonha com atirar as convenções às urtigas, ou sonhando com uma vida partilhada ao mesmo tempo que se deseja partir para comprar cigarros e nunca mais voltar.
Há pérolas como uma conversa de circunstância filosófica à porta de uma escola com um ex-namorado, uma dissertação deliciosa sobre se é melhor ter uma casa boa numa zona má ou uma casa má numa zona boa, uma tese sobre as diferenças entre forma e conteúdo ou, ainda, a presença do eu como parte assumida na literatura, notando-se uma certa aversão pela necessidade de o escritor de expor em eventos literários, subvertendo assim a própria missão da escrita – “…constituía sempre para mim uma surpresa que os escritores não sentissem mais receio da revelação física que esses eventos implicavam, já que a escrita e a leitura constituíam transacções não físicas e quase podia dizer-se que representavam uma fuga mútua do próprio corpo”.
Ainda que mais meiguinho que o anterior “Outline”, dêmos graças a Rachel Cusk por manter despertas a crueza e a agressividade, sintomas que assentam tão bem na sua escrita.
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