“Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques ou a Inveja” (Abysmo, 2018) é um romance onde todas as personagens estão em viagem, e onde esta representa o espaço da narrativa, dentro e fora do relato do herói. É, ainda, uma reflexão filosófica sobre a natureza humana, apesar de “cometermos inevitáveis erros de julgamento no quotidiano e também quando apreciamos temas mais abstractos, pois não reside em nós a grandeza de um olhar universal e entendedor sobre as coisas”.
Um padre católico, que ruma ao Oriente, conhece um padre protestante que, numa taberna do cais de Singapura, lhe lê um documento de Bernardo Vasques, um português que, no século XVI e por inveja, roubou um livro de versos ao maior poeta português. É assim que começa a viagem de Bernardo Vasques, um homem que, cego pela inveja, vai cometendo crimes em nome desse sentimento, que “fora tão forte que o levara a cometer acções indesculpáveis”.
Afinal, de que falamos quando falamos de inveja? “(…) Diz-nos Francis Bacon nos seus afamados Ensaios, também as Sagradas Escrituras falam de inveja como sendo uma ejaculação ou irradiação do olho, relacionando-a com o mau-olhado e a bruxaria. Parece-me francamente pouco.” Segundo Espinosa, o amor, o ódio, a ira e a inveja não deverão ser entendidos como vícios, antes como características inerentes e necessárias à natureza humana. Para os entender, deveremos conhecer a sua causa: conhecer é conhecer pela causa.
Quase a terminar este Arquivo das Confissões, compreendemos a verdadeira origem da inveja: “…quando se vê o outro ter algo e essa posse nos afecta, é porque o espirito se encontra predisposto à comparação. O desejo de ser o primeiro, o mais alto, o mais forte, o mais rico, o mais sábio, etc., nasce de uma ideia exacerbada de si confrontada com a existência alheia”.
Numa longa viagem pelos confins da Ásia, mas também pela sua consciência, Bernardo Vasques vive atormentado: O “livro não me abandonava o pensamento, mantendo teimosamente em mim e a sua existência. (…) O livro era, numa palavra, tudo e tudo nele se reflectia. Tornei-me ainda mais sorumbático (…) “. Conseguirá ser absolvido?
O que conduzirá os Homens a cometer tão grande pecado e a arriscar penas eternas? As tentações de Bernardo Vasques não serão, também, as de nós todos? O romance de Carlos Morais José é um livro fascinante sobre as tentações humanas, sobre o hiato do que desejamos e do que realmente somos. Uma leitura que possibilita uma profícua reflexão ética sobre a natureza humana.
Carlos Morais José nasceu em Lisboa, em Novembro de 1963. Licenciado em Antropologia, foi para Macau em 1990, onde desde então reside. Trabalhou em jornalismo, publicidade e edições. É, actualmente, director do jornal Hoje Macau e autor de vários livros.
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