“Talvez pudesse ter sido uma criança por quem valesse a pena ficar.”
As palavras pertencem a Samuel e foram gravadas para memória futura em 1981, ano em que Faye, a sua mãe, o abandonou, sem sequer ter usado a desculpa de ir comprar cigarros – simplesmente foi-se embora. Trinta anos depois, Samuel tornou-se um homenzinho como pôde, dando aulas de Literatura Inglesa e, nos tempos livres, jogando World of Elfscape sob o nome de Dodger o Elfo Ratoneiro, recusando usar abreviaturas – prefere trocar por extenso umas larachas com quem se aventura no chat – enquanto vai matando dragões, aniquilando orcs e tentando sem grande sucesso encontrar a outra metade da cara.
A mãe acaba, de forma inesperada, por reentrar na sua vida através de um advogado, que conta a Samuel que esta agrediu o Governador Sheldon Packer, estando de momento detida e acusada de ser uma hippie radical – mesmo que tenham sido só umas mancheias de cascalho. Ainda assim o cenário não é famoso para Faye, pelo que o advogado pede a Samuel que lhe escreva uma espécie de carta de recomendação. Em condições normais, a resposta de Samuel teria a forma de um manguito, mas com o adiantamento do livro que nunca escreveu já gasto e a corda colocada à volta do pescoço, esta pode bem ser a saída perfeita para Samuel, que poderá ainda exercer, de forma literária, a sua vingança. Resta-lhe assim embarcar ao encontro dos fantasmas do passado, dos seus e da sua mãe, de quem apenas sabe ter casado com o namorado dos tempos de liceu.
Vencedor do Los Angeles Times Book Award para primeira obra de ficção e eleito o melhor livro de 2016 por publicações como a Entertainment Wekly e a Audible, “Nix” (Editorial Presença, 2018) é o romance de estreia de Nathal Hill, um zoom sobre a contemporaneidade da América mas que olha, também, para o seu passado, desde os motins que abalaram Chicago e outras cidades norte-americanas até aos tempos modernos onde, nas salas de aula, os computadores servem para consultar resultados desportivos e mandar e-mails, simulando uma aparência de concentração que simplesmente não está lá.
Contornando mantras que vão surgindo como “as coisas que mais amas são as que um dia te hão-de magoar” (mãe) ou “não acredites em coisas que são boas demais para ser verdade” (avô), o humor que Nathan Hill empresta a Samuel mantém-se vivo ao longo de todo o romance, seja para falar da lição última das faculdades, da troca do baseball pela beatice como o novo desporto nacional americano ou do negócio algo absurdo e viciado dos livros, enquanto vai vasculhando os “hectares de segredos” que a sua mãe parece ter cultivado ao longo de décadas.
A galeria de personagens que habita o romance está ao nível da de um museu, destacando-se, por exemplo, Pwnage, o boss dos videojogos, que por trás de um sucesso épico na terra da fantasia vai-se espalhando nas tentativas de comer melhor e de praticar uma dieta à séria, incapaz de atirar para trás das costas a relação com a ex-namorada, que vai fazendo dele um Uber para todo o serviço.
Um livro algo alucinado sobre autodescoberta, crescimento fora de horas, segundas oportunidades e de arrancar o perdão a um lugar do corpo que desconhecíamos existir, e que coloca Nathan Hill no radar dos romancistas a ter em conta nos próximos anos.
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