Do silêncio montanhoso, uma amizade. Da dureza que é caminhar na montanha, uma relação pai e filho. No sopé, uma mãe e um abrigo para reunir a família. Mais tarde, noutra cota, uma cabana para ter onde regressar quando a vida nos pede uma pausa e uma reflexão. E é nesse tom de reflexão e com muitas pinceladas de melancolia que Pietro, o narrador, nos tece uma intrincada malha que separa a juventude da idade adulta, enquanto procura “As Oito Montanhas” (D. Quixote, 2017).
“Terá aprendido mais quem tiver feito a volta das oito montanhas ou quem chegar ao cume do monte Sumeru?”
Paolo Cognetti tem uma escrita cheia de silêncios, como aqueles que preenchem a montanha, mas também carregada de tensão como as avalanches que abalam e arrastam tudo o que apanham no caminho. “As Oito Montanhas» emergem o leitor na aspereza das relações familiares: duras e sofridas a sós, num silêncio contagiante entre quem foi deixado numa cota altimétrica à qual não pertence.
É entre cotas de montanhas, desde o bosque à pradaria e ao cume de Monte Rosa, que a família de Pietro se relaciona. Primeiro, pelo passado dos pais, caminheiros e exploradores e, mais tarde, quando a mãe lhes encontra uma casa rústica em Grana para passarem férias. Pelo meio, uma amizade que cresce silenciosamente entre Pietro e Bruno e as muitas memórias e ensinamentos que o pai quer transferir.
” – Na tua opinião, o passado pode acontecer outra vez?
– É difícil – disse, para não me comprometer. Fazia-me sempre perguntas daquele género. Via em mim uma inteligência semelhante à sua, orientada para a lógica e para a matemática (…)
– Olha aquele rio, estás a vê-lo? – disse. – Fazendo de conta que a água é o tempo que corre e aqui onde nós estamos é o presente, de que lado pensas que esteja o futuro?”
Em tom enigmático e de semblante fechado conhecemos um pai que convive com o filho, como quem palmilha terreno montanhoso: impondo-se e forçando para abrir caminho. Conversa com ele como se tudo fosse uma lição de geologia e geografia, gelando mais a relação entre eles.
“O glaciar fascinava o homem de ciência que havia no meu pai (…) o glaciar, disse-me a mim e ao Bruno no carreiro, é a recordação dos invernos passados que a montanha preserva para nós. Acima de uma certa altitude, passa a ser apenas recordação (…)
– Chama-se _cota das neves eternas_ – explicou. É onde o verão não consegue derreter toda a neve que cai no inverno. (…) Por baixo, lentamente, transforma-se em gelo. Torna-se estrato de crescimento do glaciar, como os anéis nos troncos das árvores…”
Decorrida ainda nem metade da narrativa e já nos perguntamos se a melancolia do narrador dará lugar à nostalgia de quem olha e reavalia o passado. Determinados momentos são recordados num tom dúbio: em que momento superamos a revolta adolescente e atingimos uma compreensão nostálgica dos momentos em família?
“Nos últimos tempos tinha-me metido num canto de onde observava a nossa vida familiar com um olhar impiedoso. Os hábitos imutáveis dos meus pais, as inócuas fúrias do meu pai e os truques com que a minha mãe as travava (…). Ele emotivo, autoritário; ela forte, serena, conservadora. (…)
Recusar-me a segui-lo para a montanha: era inevitável que acontecesse mais tarde ou mais cedo, já devia esperar. Mas de vez em quando penso que ele, não tendo tido um pai, não experimentara certas coisas, de forma que não estava preparado para as suportar. (…)”
A relação entre pai e filho captará mais a atenção do leitor do que a amizade entre os dois rapazes. No entanto, é interessante perceber as voltas que o autor dá ao texto para mostrar que ambos lidavam com o mesmo tipo de problemas, não tendo porém as palavras para desabafarem. Ajudaram-se como sabiam: sobrava-lhes a montanha, o silêncio, o rio. E, mais tarde, uma cabana e os anos que passam e dão forma à vida.
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