“A Puxar ao Sentimento” (Quetzal, 2018) é um inédito de Vasco Graça Moura, que contém, como consta no subtítulo, “trinta e um fadinhos de autor”.
Vasco Graça Moura (1942-2014) foi um escritor, tradutor e político português, autor de uma vastíssima obra poética, ensaística e ficcional, galardoada com vários prestigiados prémios. De salientar que o autor, assumido entre as vozes mais críticas contra o recente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, escreveu alguns fados para as vozes de intérpretes como Mísia, Kátia Guerreiro ou Cristina Branco.
Nas suas obras, e nesta em específico, Vasco Graça Moura luta incessantemente pela perfeição na transmissão de uma mensagem, por forma a expressar correctamente o que pretende exteriorizar. Tal acontece neste “fruto”, por exemplo, com duas “versões” que exibem um mesmo título e se distanciam subtilmente (elucidamos com “quis ao fado dar meu nome I” e “quis ao fado dar meu nome II”). Por vezes, a segunda versão discorre com “notas” posteriores a cada verso (como em “se fizeste o que fizeste I” quando diz “se fizeste o que fizeste, porque o fizeste não sei (…)”, que se diferencia de “se fizeste o que fizeste/e eu afinal, porque o fizeste não sei/nem tu mo dizes(…)” em “se fizeste o que fizeste II”) que parecem ser conduzidas por uma “segunda voz poética”: o leitor tem uma pré-ideia na interpretação do poema I que, posteriormente, pode revelar-se completamente diferente da pretendida pelo sujeito poético, que nos guia os pensamentos com os “ecos” referidos no poema II, dita “segunda versão”.
Em primeiríssima vista, a tradicionalidade poética apresentada choca com a acanhada expectativa de algo inovador: no entanto, os fadinhos são fiéis à sua constituição e costume.
Os versos apresentam maioritariamente métrica regular (quantidade fixa de sílabas métricas), e nas estrofes, estamos perante quadras, quintilhas, sextilhas, oitavas e, também, perante a estrutura notável de quadra com quatro décimas (funcionando a quadra como uma espécie de “mote”), que se verifica plausível atendendo às possibilidades estruturais da chamada “poesia do fado”. Quanto às rimas, temos cruzadas, interpoladas e emparelhadas, mas poucas encadeadas/interiores, também detemos rimas ricas e pobres, mas denotamos inexistência de rimas soltas, todas atributos da poesia tradicional e traços das exigências do género musical em questão. Rimas consoantes, mas também toantes (como em iluminá-la e embala), que se mostram relevantíssimas enquanto charme estilístico, em consonância com a minguada preocupação com a pontuação e o iniciar dos versos em letra minúscula.
Temos uma rígida estrutura sonora, isto é, a sonoridade não é nada discreta, porque propositadamente melódica em si (pelas referidas “rimas óbvias” ou métrica regular para os coincidentes compassos). Os versos pretendem-se cantados e a sua leitura é imediata toada: “vogais abertas”, sons claros, nasalização amortecida e poucas aliterações (por serem as consoantes “sons-martelos” para os ouvidos quando entoados). No entanto, o ritmo é por vezes cortado pela excentricidade das repetições de vocábulos, onde o movimento ondulatório do som interior tem choques e quebras com palavras aborrecidas em contínua recorrência (como “fado”, “amor”, “tanto”, dentre outras). Algumas reiterações fazem sentido em certos poemas como no poema “até ao fim, amor”, provavelmente pela existência da apóstrofe (fado interpretado por Katia Guerreiro). O ritmo é “elemento essencial à expressão estética da palavra”; no entanto, aqui sucede não haver harmonia suave, porque forçada a ser vocalizada.
A linguagem é proficuamente mais pomposa que a expectável para este tipo de canção popular portuguesa. Conquanto, há muitas palavras às quais nos sentimos presos em demasia porque de utilização muito frequente por entre toda esta compilação, como desatino (demasiado bom para desperdiçar, considerando a “homofonia terminal” com destino), ou lasciva, ou gemido, ou saliva. Não podemos condenar o recurso aos termos fado, sina, destino, considerando o pressuposto determinado de todos os poemas (o Fado): ainda assim, anuncia cansaço. Circunstancial bonito jogo de palavras como “destino enfadado”, que, ocasionalmente, se torna enjoativo aquando da utilização da relação de antonímia num mesmo verso com o mero adicionar do prefixo –des à palavra primitiva (“sempre se tece e destece”, “de tanto acreditar já só descreio”, entre outros), que sobrechega recorrentemente.
O sujeito poético é verdadeiramente interessante, considerando que amiudadamente, quando é possível identificar, se trata de uma voz feminina (como em “mas tu partiste e eu já não sou tua”), o que nos permite distanciar, ainda mais do que a inelutável dicotomia poeta-sujeito poético, do próprio Vasco Graça Moura. No entanto, arreceamos que seja um sentimento que, por vezes, tenha de partir de uma vulnerabilidade usualmente atribuída ao sexo feminino (esquecendo as questões sexistas e as sequentes inesgotáveis temáticas perigosas da actualidade), como vemos em “dei-te o meu corpo e era uma falua” ou “aqui me tens agora toda nua”.
Temos bonitas imagens irradiadas como em “o fado joga assim à cabra-cega”, que, por não serem propriamente alegorias, são carregadas de evidência automática e inutilizam a integralidade do seu potencial charme passível de ser repleto de carácter místico.
À parte da beleza lírica, temos realidades elementares, pouco consolidadas, sem exotismo: pouca originalidade, que podemos justificar pela simplicidade pré-imposta pelo “estilo musical”. A banalidade da temática não é salva pelo comum da forma cantada. A beleza de certos versos como “que a ternura que inventei/ por nós dois era inventada” é toldada pelo ligeiro burlesco do reflexo do sentimento em foco. Não há presença de grandes cogitações, pelo que é quase admirável quando sucede (como em “não é senhor de ninguém/ quem não é senhor de si”, ainda que pareça uma mera derivação do pensamento estoicista de Epictecto, verbi gratia).
Por estarmos perante o Fado, não podemos fugir à sua fatal melancolia: gostamos, sentimo-nos compreendidos e o amor é tão triste. No entanto, dá ideia de que o sentimento que corresponde ao “coração partido” é sempre, e quase somente, a solidão, e um pouco de saudade. Porque será o negativo contrário ao amor quase exclusiva e irremediavelmente a solidão? A ideia é muito repetitiva, atendendo a todos os outros sentimentos destruidores de alma resultantes de um amor desarranjado que persistem e são imagináveis no mundo.
Queremos confidenciar a comichão que sentimos, enquanto assumido preconceito nosso, com os casos de submissão praticamente exclusiva à temática do amor, como nesta obra, porque os tópicos gastos são difíceis para criações invulgares, ainda que tenhamos também consciência da inexorável relação deste afecto ardente com o Fado, à qual nos resignamos. Por tal, requestamos as nossas desculpas e “quem canta, seus males espanta”.
Sem embargo, quando o sujeito poético refere “mas não sei bem… respostas não mas dês/ vivo só de murmúrios repetidos,/ de enganos d’alma e forme dos sentidos,/ talvez seja cruel, talvez, talvez” em “talvez”, parece estar a expelir tim tim por tim tim o que nós sentimos perante a obra. Este comentário não se ambiciona duro, mas apenas mais meticuloso pela aceitação e admiração da grandeza de Vasco Graça Moura: um génio incontestável que, de facto, se mostra uma contribuição literária e homenagem singular ao Fado.
Aconselha-se a leitura de “A puxar ao sentimento” a quem sofre de amores e precisa de “beijinhos na testa” de alguém que pareça partilhar do mesmo sentimento, a quem gosta de cantarolar (e o saiba ou não fazer) as palavras que lê e a quem precisa de um poema marcante que combine com a estação fria e triste do ano, para uma “leitura grupal” num serão recheado de calor humano.
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