Ambrose Bierce, jornalista e escritor americano, nasceu em Ohio no ano de 1842, tendo desaparecido em 1914, durante uma viagem que fez ao México. Filho de agricultores carenciados, chegou a combater na Guerra Civil Americana, acabando por ficar conhecido pela alcunha de “Bitter Bierce” – ou, traduzindo mais ou menos à letra, por “Amargo Bierce”.
Pedro Mexia, que assina o prefácio para esta preciosidade chamada “Dicionário do Diabo” (Tinta da China, 2018), levanta uma tripla interrogação: “É um dicionário escrito do ponto de vista do diabo? Ou do ponto de vista de um autor tido como diabólico? Ou diabólico é o espírito que anima este dicionário?“. Bem, talvez possamos responder que “sim” a tudo, mergulhando nestas páginas como um qualquer Caim caído em graça.
Provocador nato e dotado de uma linguagem carregada de vícios, Bierce olha o mundo sempre de lado, tentando afastar-se das convenções e do engodo social em que, mais cedo ou mais tarde, acabamos todos por cair – ou, pelo menos, frequentando algumas das suas múltiplas festas. Resumidamente, este é um dicionário escrito por um cínico ou, faça-lhe justiça, por um dos seus grandes mestres.
O livro reúne colunas publicadas nos jornais entre 1881 e 1906, tendo inicialmente sido baptizado como “The Cynic’s World Book” (1906) para, mais tarde, ganhar o definitivo e ainda mais chamativo “The Devil’s Dictionary”.
Nesta ode à imperfeição, Bierce dispara em todas as direcções: sobre o patriotismo, o colonialismo, o militarismo, o clericalismo, mas também sobre vícios tão pouco nobres como a hipocrisia, a vigarice e a estupidez.
Nesta viagem de A a Z, fala-se do Advogado como um “indivíduo com jeito para contornar a lei“; do Amor como uma “demência temporária que se cura com o casamento” e deste como a “cerimónia na qual duas pessoas passam a ser uma, uma passa a ser nada e nada passa a ser sustentável“; do Assaltante como “um homem de negócios sincero“; a Beleza, essa, é o “poder com o qual uma mulher encanta o amante e aterroriza o marido“; já o Conservador é “um estadista que gosta das coisas más que já existem; por oposição ao liberal que as quer substituir por outras“; o Eleitor surge aos nossos olhos como o “indivíduo que goza do privilégio sagrado de votar numa pessoa que já foi escolhida por outra pessoa“; no campo médico, Gota é o “nome que os médicos dão ao reumatismo de um paciente rico“; o Louco, Biercemente falando, “sofre de independência intelectual em alto grau“; o Natal, quadra que se aproxima a olhos vistos, é “um dia assinalado e dedicado à gula, à embriaguez, ao sentimentalismo, à troca de presentes, ao aborrecimento público e ao mau comportamento privado“; para terminar, faça-se a devida – e divina – vénia ao Diabo, “o autor de todos os nossos infortúnios e proprietário de todas as coisas boas deste mundo“. Touché, caro Bierce. Touché.
Nesta muito bem desenhada edição da Tinta da China, as magníficas ilustrações são de Ralph Steadman, que começou como cartoonista mas depressa alargou o seu talento a outras áreas de criação. É autor/ilustrador de vários livros, nomeadamente de clássicos da literatura como “Alice no País das Maravilhas” ou “A Ilha do Tesouro”. Os seus cartoons e ilustrações podem ser vistos em publicações como The New Yorker e The New York Times.
Sem Comentários