Em “A Educação Sentimental dos Pássaros” (Quetzal, 2018 – reedição) estamos, como dita o próprio subtítulo, perante onze contos sobre anjos, demónios e outras pessoas quase normais. Onze conjunturas com as mais características figuras, cuja ligação entre si, apesar de laboriosa de captar porque ténue e discreta, se foca nos sentimentos com um aprofundar da bifurcação entre o Bem e o Mal, mantendo em destaque a origem e natureza deste último.
José Eduardo Agualusa (Alves da Cunha) nasceu no Huambo, Angola, em 1960, com ascendência portuguesa e brasileira e, actualmente, divide o seu tempo entre a Ilha de Moçambique, no norte de Moçambique, e Lisboa, em Portugal. Estudou agronomia e silvicultura, mas é romancista, contista, cronista e autor de literatura infantil. De referir ainda que os seus romances têm sido distinguidos com os mais prestigiados prémios nacionais e internacionais.
Numa divagação exposta por entre esta obra, o narrador descreve o escritor como um “passador de fronteiras” que guia as personagens entre a realidade e a ficção: José Eduardo Agualusa é um guia, nesta fronteira, tão invisível e eficaz que nem sabemos em que margem situar o fronteiriço descrito. Com inesperados conceitos, move-nos com delicadeza mas grande tenacidade por entre mundos intensos.
Verificamos uma abundância sublime de figuras de estilo: bonito uso de hipérboles metafóricas como em “Sinto que continuo a cair, estendido de bruços na lama, enquanto a manhã estala e cresce ao meu redor”, presença imperturbável de uma ironia deliciosa e incessante, tanto para assuntos leves, como para dores consideráveis e sinestesias hábeis que parecem quase acidentais. O narrador partilha com o leitor expressões doces como “Lugares-comuns são reconfortantes, como um abraço” e demonstrações inteligentes que provocam uma atípica vontade de expelir sons de contentamento como “O frio encolhia a tarde”. Expressões ruidosas ecos do desejo de estas terem provindo de nós, ególatras: mas, como se sabe, os bons escritores escrevem o que nós não conseguimos dizer.
José Eduardo Agualusa transmite a beleza do harmonizar de uma linguagem eloquente e clássica sobre toques tímidos de problemas que se conservam no tempo (como o mal do “trabalho”, ou a dor da solidão), com elementos modernos (“Ligou o computador e entrou no Facebook”) nos termos do circunstancialismo contemporâneo. Destacamos a graciosa maneira de apresentar a vida (“Dizem que depois de mortos vamos para o Céu. Eu queria morrer no Céu e só depois de morto vir parar na Terra.”).
Inconfundivelmente próprio são os vocábulos do português do Brasil (como “garoa”) que condimentam e definem a particularidade que é José Eduardo Agualusa, o apelo à intertextualidade e toda a circunstância de muito se encontrar relacionado com África (de uma forma tão ininterrupta que estranhamos quando não acontece). Esta última faceta especialmente curiosa e individualizadora, ainda que possa transmitir pós de insegurança para aqueles que não conhecem factos ou a actualidade do mundo africano.
A batalha da tentativa de um comentário específico para cada conto e as suas peculiaridades, nunca nos atreveríamos a combater considerando que cada um é um mar de motivos que podem e deveriam ser realçados, discutidos e pensados.
Numa corrente de líquido criativo, há toda uma mancha filosófica que nos faz balançar em reflexões, como em “A bondade é transparente, não carece de explicação”. As reflexões são pequenas e airosas escapatórias numa linha de narrativa que tradicionalmente se manteria contínua. Cada raciocínio suscitado coloca-nos numa perturbação interior, numa sensação de dúvida e ginástica mental com ânsia de debate presencial, que não se encontra condicionada pelo narrador, uma vez que este aparenta uma enorme transparência e imparcialidade em relação aos assuntos, como num combate ideológico entre personagens (“-… Os pobres de espírito não conseguem ser maus. -Disparate! As crianças são ferozes.”).
Cada palavra afigura ser pensada e a releitura (ou uma primeira muito atenta) efloresce ideias que não se encostam no nosso pilar de captação inicial, porque o tamanho reduzido e a aparente simplicidade da obra são apenas uma máscara que se mostra irreal. Todas as mensagens, tanto por entre o conto como o conto na sua plenitude, surgem num subentendimento que, na verdade, não se pretende subentendido. Apesar de um dos contos se apelidar de “Sermão em Parábolas” (que, para que consigne, se apresentam ab initio num formato extremamente apetitoso), todos eles funcionam enquanto narração alegórica, carregados de símbolos e mensagens morais. No entanto, é-nos sempre permitido manter uma colossal liberdade de interpretação.
Certos contos pecam por um fim tenuemente imperceptível, com uma ponderação conclusiva exigente. Ainda assim, não duvidamos que seja por falta de capacidades nossas e nunca do que se pretende escrito. Como se refere no já mencionado “Sermão em Parábolas”, “se alguma coisa semearmos, alguma coisa haveremos de colher” e desta reunião de palavras, independentemente da perspectiva de proveito, colhemos com indubitabilidade.
Por capricho nosso, pretendemos enfatizar a pureza da capa que congraça com maestria com a obra e a torna visualmente apelativa: esvoaçantes penas com relevo aderente num fundo de dégradé de cores quentes derivadas de uma lógica apurada.
Aconselhamos a leitura de “A Educação Sentimental dos Pássaros” a quem se sente com falta de coragem ou de tempo para atacar livros rechonchudos – mas carece de algo desafiante arquitectado com requinte – e a quem gosta de algo desoprimido para momentos ligeiros de prazer.
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