Paulo Moura é escritor, professor de jornalismo e repórter reconhecido e premiado, com uma larga experiência na cobertura jornalística em zonas de crise por todo o mundo. Se mais não houvesse, tal introito pareceria suficiente para que se atribuísse crédito e mote para leitura ao livro reportagem “Uma Casa Em Mossul: Os Últimos Dias do Estado Islâmico” (Objectiva, 2018).
O tema é impactante. Mossul, terceira maior cidade do Iraque, foi nos anos de 2016-17 palco de um conflito brutal para ser libertada do Estado Islâmico, resultando num rasto de milhares de mortos, ruinas e sobreviventes sem qualquer suporte. A devastação, causada pelos cerca de nove meses de confrontos entre as forças iraquianas e o grupo extremista, deixou uma população sem perspectiva, numa profunda crise humanitária.
Em 2017, Paulo Moura quis aproximar-se o mais possível do Estado Islâmico, essa “imagem que se desvanece quando lhe tentamos tocar”, realidade à qual ”um jornalista só chega quando os jihadistas já partiram ou foram aniquilados. Se chegar antes será ele aniquilado fisicamente ou, se não fisicamente, decerto como jornalista”. Criou uma base em Erbil, fez incursões pelo Curdistão iraquiano, aproximou-se da Síria, atravessou a Turquia, teve encontros secretos com sírios em Istambul para, finalmente, entrar em Mossul Ocidental, quando os combates ainda decorriam.
Acolhido por um jovem que conhecera em visita anterior à cidade, foi instalado numa casa em Mossul Ocidental e dormiu durante semanas numa cama, sem colchão, num pátio ao ar livre situado entre a casa e uma vala comum ainda por abrir. Experienciou dias de vagabundagem pela cidade destruída, exposto aos snipers escondidos, às evidências de genocídios recentes e ao risco de ser raptado e vendido ao Estado Islâmico – senão por outros, pelos próprios anfitriões. Através da família do jovem Khaled, demonstra o que significa traspor as leis do Corão para o quotidiano, a necessidade que existe e impera de protecção das mulheres do contacto com estranhos, da autoridade dos mais velhos e do determinismo das suas decisões até em assuntos da esfera mais intima, como os casamentos e a escolha das esposas – “as mulheres são como os cavalos, … uma combinação de sangues …, se conhecermos os progenitores, não nos enganamos”.
Em toda a vivência testemunhada e discurso obtido, a contradição, ainda que pontualmente reconhecida, parece não incomodar, sendo liminarmente desvalorizada e rejeitada. Importa apenas cumprir o que o mundo muçulmano exige, mesmo que não se saiba explicar porquê, com uma estranha capacidade de alheamento e ilusão ou fuga à realidade, levando a que se procure passar para fora, através dos jornalistas, não uma cidade saqueada e destruída, mas os aspectos positivos do maior aglomerado urbano do Norte do Iraque, o seu interesse histórico, os monumentos. Na página do Facebook de Khaled não há uma única imagem de violência ou destruição. Apenas selfies muito glamorosas junto ao rio, num parque, a apresentar um trabalho na universidade.
A constatação de Paulo Moura foi que a cidade já não existia, mas as pessoas sim. O interesse estava nelas, na forma como viveram e sentiram a barbárie, e em como (re)definem a atitude perante a vida.
Foi neste ambiente que escreveu este livro, de onde salta muito mais a sua experiência do que a análise rigorosa do Estado Islâmico como fenómeno político, religioso ou militar, ainda que forneça importante informação cronológica sobre o processo, o conflito e as batalhas, adicionando elementos de reflexão sobre o enquadramento e a legitimação das decisões e dos processos internacionais actuais e históricos.
No final, fica a convicção de que a exposição ao impensável é tal que o impacto na vida do repórter persiste muito para além do momento, muitas vezes sacrificando a sua própria dignidade.
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