“A Festa dos Caçadores” (Abysmo, 2018), de Henrique Manuel Bento Fialho, apresenta uma compilação de histórias concisas e densas, repletas de criaturas e acontecimentos que se suspeitam reais, nos quais o leitor encontra uma voz narrativa, personagens e enredo breve, sem espaço para derivações paralelas.
O livro oferece contos reveladores de três ambientes distintos na vida do autor: a infância passada em meio rural, na zona de Rio Maior, a posterior passagem por outras paragens e o regresso às origens, com a constatação que muito se alterara.
Narrativas do passado que contêm, em si, imagem e identidade pessoais, muito de autobiográfico, elementos de inspiração surgidos de experiências próprias, percebendo-se que o autor partilha muito do que o leva a criar, escrever e viver, força unificadora do presente.
“Invadidos por uma descontrolada aflição, os pensamentos tropeçaram uns nos outros. Tentei organizar os resquícios do passado que ali tinham ficado ao abandono. Uma infância esquecida. E encontrei. Encontrei desenhos, composições, cópias, contas, poemas, redacções, escritos por uma mão que foi minha, com um discurso que lamento haver perdido.
Despertei do sonho sem uma única palavra. Era apenas um deserto de angústia com a cor do vazio, uma lágrima suada a percorrer um rosto transformado pelo tempo. Mas era também a memória de haver sido o que já não sou.”
Algumas relatam histórias de personagens mais ou menos obtusas, cuja narrativa terá circulado apenas verbalmente, entre portas de um meio rural e informal.
“O Espalha Orgasmos queria ser polícia, sonhava com farda, coldre à cintura, distintivo na mão. Ainda frequentou o curso da GNR, mas falhou nos testes de resistência física. Acabou como segurança num supermercado, onde só uma farda aprumadinha e poder andar de trombas o dia inteiro evitam que a auto-estima se lhe afunde com a porcaria da existência que obstrui o ramal do esgoto da vida.”
Henrique Fialho mostra-nos, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, que a memória não tem que ser encarada e vivida como algo inerte, presa ao passado. Pelo contrário, ao ser evocada no presente, influenciando-o, perpetuando-se, assume dinamismo e um papel fundamental na construção da identidade de quem a viveu e de quem agora a conhece.
Transmissões de lembranças do quotidiano, os contos que Henrique Fialho apresenta surgem ora como lembranças objectivadas, armazenadas e reincorporadas através da escrita, passíveis de serem repassados e valorizados noutros tempos e contextos. Algo que se sente como memória individual e cultural, constituída por herança simbólica materializada em texto como é o caso de Perdigoto, pastor de ovelhas que “tinha um modo único de cambalear. Deixava o peito cair para a frente, flectia ligeiramente as penas e, passo à frente, passo atrás, saltitava ao jeito de um coelho bravo. Faziam-se apostas sobre o momento de ir ao chão”.
Num registo mais contemporâneo, “Luísa Maria andava melancólica, medravam-lhe divórcios à volta do lar. Ela reencontrava nas amigas divorciadas a jovialidade perdia, uma alegria de viver que Luísa hipotecara em favor da família. Livres de encargos domésticos, as mulheres readquiriam o sorriso adolescente das noites, dançavam até altas horas nas discotecas da moda, voltavam a seduzir e a sentir-se sedutoras, descomplexavam a dança e tornavam a caminhar como as musas, ondulantes, provocadoras, reluzentes. Luísa Maria olhava para elas com a nostalgia do que fora”.
Espaços, pessoas, experiências vividas que deixaram rasto. Pequenos textos que misturam memórias e imaginação, identidade e captação perspicaz do quotidiano, passado e presente. Ainda um olhar sobre o espaço coletivo e cultural de uma época, pós 25 de abril revelando excertos de vidas insondáveis, ocultas ou banalizadas. Tudo como uma narrativa impregnada de humor e ironia, em muitos momentos poético.
Mais de cem histórias compiladas em pouco mais de trezentas páginas, num livro que tem tudo para ser portátil, atentos os seus 12,8 x 16,9 cm, em capa mole, para ser lido sem pressa e ser relido, comentado e partilhado, propenso a pensamentos nostálgicos e boas gargalhadas tendo por base o olhar e a sensibilidade de Henrique Manuel Bento Fialho, licenciado em filosofia, ex-professor e formador, que desde 2000 escreve e vive entre livros. Haverá melhor combinação?
“Nascer
A primeira vez que nasci foi numa vila do antigo Oeste, disparado para dentro de um útero que, anos mais tarde, serviria para estender roupa suja de um corpo iniciado na morte.
A segunda vez que nasci foi numa capital de aldeias divididas por praças deslavadas, numa paragem de autocarro, de madrugada, a aprender o ofício de viver com empenhada solidão.
A terceira e última vez que nasci foi numa falésia do esquecimento, a tentar resolver a dor da traição e o ódio daí crescente.
Devo hoje ser uma mistura disto tudo, embrulhado no papel do medo, amarrotado, à espera de um destino que me caiba em sorte.
E esta foi a história da minha vida. Até hoje.”
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