Se o Reino da Literatura fosse algo semelhante a uma manta de retalhos, Joel Neto seria, sem qualquer dúvida, um dos seus tecelões mais requisitados, com encomendas que fariam com que as 24 horas do dia fossem curtas para tanto jogo de linhas, dedais e agulhas.
Depois de “Arquipélago“, um dos mais notáveis romances que a literatura portuguesa viu nascer nos últimos anos, Joel Neto repete, em “Meridiano 28” (Cultura Editora, 2018), muitos dos processos do seu antecessor: uma galeria de personagens imensa, que obriga à construção de árvores genealógicas mentais ou a consultar as páginas iniciais, perto de uma lista telefónica impressa a preto e branco; uma escrita meticulosa, onde cada palavra arde em lume brando enquanto um som melancólico vai saindo de colunas imaginárias; viagens temporais entre presente e passado, que aos poucos vão montando, numa moldura antiga, o puzzle que apenas conseguimos vislumbrar à partida.
“Em quantos lugares no mundo sabe o José Filemom de ingleses e alemães terem permanecido em paz durante a Segunda Guerra Mundial?” É este o isco que Mr. Fitzhugh, também conhecido como Devon Fitzhugh ou o “velho dândi”, lança a José Filemom, passando-lhe um cheque em branco a que corresponde um único pedido: “Preciso que escreva um livro sobre um homem cujo legado as gerações vindouras devem conhecer.(…) Preciso que escreva um livro sobre um caçador de nazis e o vulcão que serviu de pano de fundo à sua história“.
Um projecto travado antes do seu arranque pelo próprio caçador, Hansi Abke, tio e último familiar vivo de Filemon, uma daquelas pessoas de feitio difícil que não deixam escavar para além da superfície, deixando pairar eternamente a dúvida de se será um bom tipo ou alguém a quem não devemos confiar a mala enquanto vamos por minutos ao quarto de banho.
Vinte anos depois e após o desaparecimento do tio com quem cortou relações durante duas décadas, Filemon é de novo contactado pelos mecenas americanos, que finalmente o conseguem empurrar para escrever o livro sobre o tio ou, talvez, um livro sobre a história dessa própria busca familiar, num cruzamento entre a literatura e a ficção que acabará por ser, também, sobre a sua própria identidade. Filemom que dirige um site de citações alheias chamado Palavra Profunda, e que no que toca à escrita se considera um verdadeiro nabo: “Nunca escrevi um parágrafo. Nunca escrevi uma linha. Sou um informático“.
O livro situa-se em dois momentos temporais: 1939, o ano em que o mundo entrou na sua mais mortífera guerra, mas onde no Faial, durante mais de três anos, ingleses e alemães conviveram em paz, conhecidos como “os loucos dos cabos telegráficos“. É aqui que conheceremos Hansi enquanto adolescente, bem como as suas primeiras paixões e amizades que julgava serem para a vida – e, também, o lugar onde dentro de si cresceu uma sombra que o iria sempre acompanhar; e o Faial actual, onde Filemon ganha fôlego para alcançar uma nova existência, indeciso entre dois amores, à nora sobre o que fazer com a vida, sem saber ainda que tem nas mãos uma segunda e rara oportunidade.
Joel Neto recria também os Açores durante a guerra, bem como a forma como esta mexeu com os hábitos sociais e culturais, num lugar que parecia demasiado distante para que algo de transformador acontecesse, incrédulo sobre a mudança que alguns dizia estar apenas à distância de meses: “Mirou à esquerda, mas a Europa estava muito longe. Mirou à direita, mas a América estava mais longe ainda. Mirou em volta e tudo era longe, tão longe que não poderia ser real“.
Joel Neto acaba por seguir o conselho que uma das personagens dá a certa altura a Filemom – “Juntar uma tábua de personagens, como o Nemésio” – para, no final e através do autor ficcional, questionar o seu próprio romance e método, incerto sobre o lugar até onde esta imensa busca o terá conduzido: “Misturara o romance com episódios plausíveis e factos comprováveis. Até com matéria histórica. E criara percalços, medos, sentimentos de culpa. Encenara a tristeza e o desespero, a súplica e o despeito. Ele, Jose Filemom, tinha mordido o isco. Fora até ao fim. Nunca desconfiara. E agora pensava naquilo tudo e perguntava-se: para quê? Valera do quê, aquele trabalho todo? Servia para quê, aquele livro que escrevera?” A isto, responde o leitor e o crítico: para nos contar mais uma grande história.
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