Durante trinta anos e antes de a ETA ter anunciado o abandono das armas, o País Basco viveu sob o signo do terrorismo, transformando-o num lugar de medo, (in)submissão, fervor e adesão à causa onde, quem não estivesse a favor do combate pela independência, o melhor que tinha a fazer era pegar nos bens e partir rumo, no mínimo quilométrico, a uma outra Espanha.
Os anos que marcaram o fim da luta armada não foram, porém, pacíficos, e é precisamente nesse limbo histórico que Fernando Aramburu, licenciado em Fiologia Hispânica, antigo membro do Grupo CLOC de Arte y Desarte e autor de diversos e premiados romances e livros de contos, mergulha em “Pátria” (D. Quixote, 2018), livro que se tornou num best-seller em Espanha, juntando às tiragens sucessivas o reconhecimento: Prémio Nacional de Narrativa, Prémio Nacional da Crítica e Prémio Euskadi de Literatura.
A narrativa gira à volta de duas famílias que, às diferentes dinâmicas e percursos sociais, tiveram também diferentes escolhas políticas, acabando por, a certo momento, transformar uma amizade que se previa eterna num manto de indiferença, ressentimento e ódio, ainda que o amor ainda espreite por entre alguns elos, sempre num silêncio comprometido. Famílias que, aqui, surgem lideradas por duas mulheres de pulso firme.
De um lado está Bittori que, logo após o anúncio do abandono das armas pela ETA, decide regressar à povoação que tinha abandonado quase três décadas antes, quando Txato, o marido, havia sido assassinado a tiro por terroristas, que lhe iam exigindo cada vez mais dinheiro enquanto iam pintando insultos na parede, fazendo dele um proscrito do qual havia que guardar distância e silêncio para evitar represálias. Isto numa altura em que as opções eram apenas três: “Pagas, emigras ou arriscas“. Nerea, a filha de Bittori, tenta salvar um casamento de doze anos com um marido que, às nove horas da manhã, já traz consigo o cheiro do álcool. E há também o filho Xabier, médico, aquele que se sente mais mordido pela compaixão, “uma corda invisível que levava atada ao pescoço“.
Do outro está Miren, em tempos amiga íntima de Bittori, alguém que, após o encarceramento do filho Joxe Mari, acusado de terrorismo, abraçou a causa da ETA com todas as forças, fazendo da luta armada um combate contra um quase luto em vida. Joxian, o marido, é uma espécie de vai com as outras, enquanto Arantxa, que vive com uma deficiência que a paralisa perante o mundo, mantém uma lucidez tremenda, e talvez o equilíbrio maior entre todas estas personagens: “Nesta nossa terra a verdade morreu há muito tempo“.
O livro viaja entre estes dois períodos temporais, mostrando como a ETA mexeu com toda uma estrutura social, impondo um estado totalitário onde, a par do fervor revolucionário, imperava também o medo, num país que durante décadas se moveu entre o silêncio, a indiferença e a exclusão.
Aramburu navega com mestria entre estes dois momentos temporais, mantendo em lume brando uma revelação que é, desde logo, pressentida nas primeiras páginas. Porém, mais do que o alimentar deste previsível epílogo, “Pátria” debruça-se sobre a impossibilidade de esquecer e a necessidade/vontade de perdoar, desmontando os alicerces que abalaram não apenas a amizade entre estas duas mulheres como, também, a própria estrutura familiar de cada uma delas, que balançam entre a inveja e a nostalgia.
Condenando veemente o regime de terror imposto pela ETA, mostrando também que o sistema funcionava muito com o espírito de marioneta que aproveitava a efervescência de uma juventude em rebuliço – a instrumentalização dos cordeirinhos -, Aramburu não deixa de mostrar o outro lado da barricada, aqui pelas palavras do padre Serapio: “Aqui houve repressão, fizeram-se buscas domiciliárias por onde quiseram, prenderam inocentes e maltrataram-nos ou, para sermos mais exactos, torturaram-nos nos quartéis. Neste momento temos nove filhos da vila com penas de muitos anos na prisão. Eu não vou entrar em discussões sobre se merecem ou não o castigo. Não sou jurista, político também não, tão só um simples sacerdote que gostaria de contribuir para que as pessoas da terra vivessem em paz“. E é precisamente essa paz, esse perdão, que todas estas personagens, cada uma degladiando-se com os seus próprios fantasmas, tenta encontrar, mesmo que incompleta.
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