Há um tempo de perdão e de redenção que reconstrói o sentido da vida de personagens e de autores. Quando estas duas dimensões convergem e se potenciam, ficção e realidade balanceiam e envolvem o imaginário. Em “Salvação” (Parsifal, 2018), o último dos seus doze romances publicados, Ana Cristina Silva realiza uma simbiose quase perfeita entre ciência e imaginário, realidade e sonho, construção e efabulação, tanto da história retratada como dos temas ancorados.
Ao fim de quinze anos consecutivos a escrever dispôs-se sem rodeios a falar de si, do que escreve e do que antevê quando, de alguma forma, se expõe através do que publica. A postura combativa e resistente face a hegemonias e a cedências editoriais deixa clara uma forma de estar e de preservação de integridade – e de sobrevivência enquanto autora.
Num movimento aparentemente antagónico, completa a sua veia dominante de docente e investigadora académica em psicologia, fiel à realidade e a narrativas sustentadas em hipóteses, demonstrações, discussões e conclusões, com narrativas emocionalmente ricas, psicologicamente intrincadas e culturalmente sustentadas.
“Salvação” expõe a colonização da dor, o avanço galopante do sofrimento perante perdas irreparáveis, amparado em mecanismos psicológicos de compensação e superação da perda: “O sofrimento do luto é um longo corredor que não é possível passar a correr”.
O sofrimento também como compensação, sinónimo de ligação e perpetuação do amor. Num último apelo, Sofia pede: “Escreve, quando eu morrer escreve um romance”. Em resposta, o marido, escritor, dá corpo às emoções, objectiva-as, distancia-se e tenta superá-las vivendo dentro dos livros, sendo-lhe por vezes difícil distinguir entre o fictício e o realmente sucedido, como se atirar palavras sobre outras palavras pudesse, pelo menos em parte, conter o desgosto e a culpa.
Retrocedendo ao Séc. XVII, a materialização do apelo de Sofia traduz-se numa narrativa histórica, orientada pela vida de um médico, cientista, judeu e fugitivo. Com mais de 90 anos, debilitado e à espera da morte, também este se retrata de uma vida de ausências relativamente à filha que abandonara ao fugir da inquisição. Também ele escreve para enfrentar os demónios, servindo-se da palavra escrita como forma de se olhar de fora.
No século XVII como na actualidade, em pleno Século XXI, argumentos de fé conduzem à violência, tendo por base o fanatismo religioso, revelando-se assustadora a réplica actual de outros tempos, de uma história de atrocidades cometidas em nome da fé.
Qual o grande sentido da narrativa de “Salvação”?
Trata-se de um livro que surge num momento marcante da minha vida: o facto de fazer 15 anos de literatura e, também, o atentado em Bruxelas em março de 2016. Bruxelas é um sítio muito especial para mim, por lá ter desenvolvido um projecto e me manter ainda muito ligada. Depois, fazendo 15 anos desde que tinha publicado o meu primeiro romance, achei que era chegada a altura de dizer qualquer coisa sobre o que era a escrita. É por isso um livro sobre vários tipos de redenção através da escrita, do narrarmo-nos a nós próprios para encontrar um sentido, oral ou escrito, para o que vivemos. É efectivamente muito especial para mim. Há oito meses fui atropelada numa passadeira, fiquei com um ligeiro trauma no hemisfério esquerdo, o das palavras, em razão do que tenho mais dificuldade em invocar palavras, como se fossem enguias especialmente fugidias. Acabei o livro em Julho, fui de férias e depois atropelada. Voltar ao livro, reescrevê-lo após ter sido entregue, foi a minha salvação. E por isso, literalmente, trata-se de um livro sobre várias salvações.
É também um livro muito impactante, como se fossemos outro dentro da ficção.
Sim, de certa forma. Nunca escrevi um livro confessional, sobre o que me aconteceu. Tudo o que escrevo resulta do que apreendo no papel da personagem, não numa perspectiva projectiva mas elaborada. É a minha visão de determinado acontecimento e das personagens que o gravitam. Acho que os escritores em geral, e eu própria, tal como Saramago disse uma vez, começam a escrever para serem amados, pondo tudo de si na sua obra. Nestes casos, muitas vezes a critica à obra é sentida como se fosse uma crítica a si. A maioria dos escritores são criaturas frágeis. O nosso Eça de Queiroz, por exemplo, morreu ressentido com a literatura por isso mesmo, porque temos dificuldade em distinguir o nosso valor do valor da nossa obra, provavelmente porque passamos muitas horas sozinhos sentados a escrever, dando muito de nós à obra. O livro que temos na imaginação é sempre diferente daquilo que conseguimos escrever. Porque há a mediação das palavras e as palavras são enguias fugidias: às vezes vêm exactamente como a gente quer, outras vezes não nos aparecem, implicando que a concretização do que imaginamos não saia tão ajustada como queríamos. Um livro são muitas páginas, muitas horas, muito voltar atrás e à frente.
“Escrever para enfrentar os demónios. A palavra escrita ajudando a olhar-se de fora”. É possível encontrar no livro vários temas da psicologia.
Com efeito, para escrever “Salvação” estudei as várias fases do luto que correspondem às fases que a personagem principal do livro atravessa. Um luto não patológico é um luto muito intenso que, gradualmente, graças à escrita e ao romance que ele escreve, se vai tornando mais leve. A personagem contemporânea, escritor no Século XXI, passa por uma fase histriónica graças ao horror dos atentados terroristas, obrigando-o a mergulhar no mundo. É um livro complexo, com vários níveis de leitura e formas diversas do escritor se reflectir na escrita: o nível da escrita, da ciência e de Deus, dos horrores provocados pela procura de Deus, quer no século XVII quer na actualidade. Todo o processo de perda do escritor se reflecte na perda da personagem histórica que ele encontrou, o David Negro, com decisões e perdas muito definidas com o que vai acontecendo na sociedade, através da inquisição. Assim como o processo do próprio escritor é influenciado pelo que ele vai vendo na televisão, os massacres cometido pelos jihadistas.
Na minha obra procuro interligar dois níveis: um mais individual e outro social, sendo na interacção entre estas duas dimensões que a narrativa se desenvolve. Estudo os processos que estão subjacentes aos livros que escrevi. Em “A mulher transparente”, por exemplo, interessei-me e estudei o processo que submete as mulheres à violência doméstica. Tenho um outro livro já muito antigo que envolve a guerra colonial, para o qual estudei o stress da guerra. Mas, em geral, centro-me mais no interior e não tanto no exterior: não há descrições do espaço, da casa, da cidade, porque o que me interessa é a realidade interna.
Podemos dizer que o ponto de partida da sua obra é um conflito, um mecanismo psicológico romanceado?
Sim, em parte. Em “Salvação” é o luto, mas também a parte social que se reflecte na procura de Deus e da divindade, e que se manifesta no extremismo e na maldade ao longo dos séculos e em todas as religiões. Em todos os meus livros há um conflito espelhado. A violência doméstica em “A mulher transparente” (Oxalá Editora, 3ª edição, 2017), o abandono e a culpabilidade nas “Cartas vermelhas” (2011) – o que leva uma mulher comunista a apaixonar-se por um PIDE e a abandonar o filho. O que me faz escrever é eu não compreender uma determinada realidade. Os mecanismos psicológicos e a vivência psicológica são o fio condutor dos livros, ainda que procure a articulação entre dimensões pessoais e sociais, porque a literatura deve abanar consciências.
No percurso pela sua trajetória que outros temas destacava?
“Mariana, Todas as Cartas” (2002) é um livro de estreia que se destaca por isso mesmo, por ser de estreia. Não o voltei a ler. Comecei a escrever porque me apaixonei por um estrangeiro. Mariana, para quem estava apaixonado e a viver um desgosto de amor, era a personagem ideal. Foi uma coisa experimental, escrita em quatro meses, numa altura em que concluía o meu doutoramento em psicologia da educação.
“A noite não é Eterna” (2017), o livro que ganhou o Prémio Fernando Namora, é um livro com uma estrutura absolutamente linear, um romance directo, a direito. Mas gosto mais daqueles que implicam descontinuidades. Neste sentido, para além deste romance que está muito encaixado, como as matrioskas, destaco “Cartas Vermelhas” (2011), escrito na primeira e na terceira pessoas, em que a protagonista conta a sua história à filha para se justificar. Cada capítulo tem o nome de cada uma das personagens que ela assumiu na clandestinidade. “As fogueiras da inquisição” (2008) tem já outra estrutura, ao ser contado na primeira pessoa – do ponto de vista de vários personagens – e por nele existir uma sobreposição da acção, terminando num ponto onde é outra personagem que retoma o que foi dito no capítulo anterior – mas de um outro ponto de vista.
Como é a conjugação entre a parte académica e a literária ou de redacção de romances?
É uma conjugação difícil porque a parte académica implica a produção de artigos científicos, num registo completamente diferente do registo da literatura. Às vezes é-me difícil mudar de um registo para outro, porque apesar de tudo não vivo da escrita, mas do meu trabalho académico. É muito aborrecido estar a escrever um romance e ter de fazer uma crítica ou artigo, entrando num registo diferente. Em regra apetecia-me continuar no romance, que tem aquele ar de trabalho mas também de devaneio, implicando estar sentada à espera da inspiração que, ainda assim, vem do trabalho.
Como definiria o presente, como escritora?
Ao fim de 12 romances já sou capaz de me caracterizar, capaz de ver o comum, quais os fantasmas que se manifestam sem eu dar por isso, e o que é que se repete nos livros. Uma das coisas que me caracteriza é o facto de escrevê-los sempre do ponto de vista do interior, dos conflitos das personagens. Não tenho a certeza se estou melhor do ponto de vista da linguagem, mas quanto a isto tenho a certeza de o ter aprimorado. Trabalhando a linguagem e a comunicação do conflito e dos sentimentos, procuro transmitir como isso é o motor das vivências. Há uma coisa que se repete em vários livros que é o narrar, e isso vem da psicologia: o paciente cura-se narrando-se e encontrando outras narrativas. O narrar, no dia-a-dia. Vamos narrando-nos a nós próprios, ainda mais no momento da morte: é o que dá sentido. Recordo aqui Rosa Montero e uma das personagens dos seus livros, que fala da importância do narrar, quer para o luto quer para o moribundo, no sentido de encontrar o sentido, de filtrar o essencial do acessório, e isso é uma das minhas obsessões. Tanto que escrevo livros pequenos, com descrições muito centradas e depuradas daquilo que não é essencial. Não me considero uma autora de romances históricos, faço pesquisas naturalmente. Interessa-me o romance histórico na perspectiva ede que fala o Milan Kundera: para mostrar que a condição humana é intemporal. Sou mais uma escritora de romances psicológicos, onde a narrativa está subordinada à vivência emocional das personagens. Em certos livros, a própria descrição do exterior parte muito do interior.
O que é que o escritor ganha com a escrita de um livro como “Salvação”?
Ganha o prazer de escrever. Tenho medo de estar a ficar ressentida, como o nosso Eça. Falta no circuito editorial e literário espaço para literatura fora da grande concentração das grandes editoras, há uma rede de ligações em circuito que é relativamente pequeno, onde é difícil entrar. O meu foco é trabalhar e escrever, andando pouco a cirandar. O prazer que tenho é esse, o de escrever. Hoje quer-se coisas curtas e breves, e isso está de alguma forma dito no livro através da personagem do escritor. “Salvação” é um livro que se presta à reflexão e ao debate, que tem muitos níveis. É possível isolar excertos e passagens sem as desvirtuar. Por exemplo, “Deus e os seus crimes”: como as três religiões monoteístas cometeram crimes, como em nome de todas as religiões se cometeram crimes, como se morre e se mata para eliminar os heréticos.
O que podemos esperar do futuro próximo?
Neste momento estou a escrever um romance sobre uma PIDE feminina, com o foco numa presa política. Será talvez outra coisa que também me pode definir, o de ser uma escritora sobre a violência.
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