Bombaim, Corona, Idles e Filhos, Lda. Poderia ser este o nome escolhido para uma empresa versátil em obras de demolição e outras tarefas que impliquem a destruição maciça de estruturas, recorrendo a bulldozers, wrecking balls e outros artefactos de monta. Foi assim, ao som de obras em casa, que arrancou o segundo dia do NOS Primavera Sound, onde o sol lá espreitou, as toalhas de piquenique finalmente saíram das malas e o espírito Glastonbury morreu antes que a melancolia transformasse tudo isto num Primavera Sad. Isto numa noite em que o grande triunfo vieram das actuações que à música juntam todo o aparato cénico e a veia teatral: Superorganism e Fever Ray.
As primeiras notas de melodia surgiram pela voz do americano Amen Dunes, uma folk/pop desconexa com uma linha dominadora de baixo/bateria e teclados densos, pautada por umas linhas de guitarra e uma voz em crescendo, com muitas das músicas a terem sido, segundo Dunes, na cidade de Lisboa – uma delas escrita a pensar no oceano para não cair em neuras.
Os Yellow Days praticaram uma soul entre o espírito clássico de um Ray Charles – assumida referência – e um post-rock a dar para o progressivo, qualquer coisa como uns Pink Floyd entretidos a passar os discos de vinil que encontraram numa arca com selos da Atlantic e da Stax Records. George van den Broek tem uma voz tremenda, mas infelizmente o campo de testes presente em “Everything Okay In Your World?” não passou para cima do palco, num concerto demasiado formal e pouco variado em termos melódicos.
Ainda fomos espreitar o urso cinzento, aka Grizzly Bear, sempre sofisticados, bem como assistir à ponta final da actuação das francesas-cubanas Ibeyi, que estavam felizes da vida pondo toda a gente a cantar o refrão de “Deathless”, mas por esta altura as nossas atenções estavam já viradas para os Superorganism que, no palco Pitchfork e à boleia do homónimo disco de estreia, ofereceram uma visita guiada ao maior parque de diversões da cidade. Eles que são uma espécie de I`m From Barcelona dos tempos áureos, com muito mais de electrónica mas decididamente menos juízo.
A entrada em palco fez-se ao som de sininhos, trazidos pelo trio-maravilha constituído por Ruby, B e Soul que, aos coros e a uma tímida percussão feita com frutas musicais, juntaram uma dança feita de coreografias a preceito, feita com uma alma teatral digna de levar para casa um Oscar. Um set sem concessões onde não faltaram desvairadas projecções visuais, como quando, ao surgirem palavras de ordem como “Round One”, “Knock Out” ou “Check Point”, se simulava um animado jogo de consola. Ou ainda o espírito aquático de “Prawn Song” ou a mais calma “Tokyo”, onde como num genérico cinéfilo iam desfilando, sempre em modo de animação, arranha-céus, telemóveis e outras peças do imaginário nipónico.
Orono Noguchi, a vocalista que só recentemente chegou à idade de votar mas continua a ter o ar de quem saiu da escola primária – o impermeável verde com bonecos acentua ainda mais esse ar infantil -, confessou ter tido um namorado que afinal era hipster, afirmou estar totalmente chill, elogiou Shellac chamando-lhe um simpático asshole – dizendo que “all of us are assholes” -, bebeu uma Sommersby na derradeira malha “Something For Yoy M.I.N.D.” e, já depois do parque da montanha russa e os carrosséis terem fechado, veio à grade oferecer a set list, correndo a fila de uma ponta à outra para distribuir high fives. Quando for grande também quero ser um superorganismo.
O maior motivo de contentamento surgiria pouco tempo depois com a actuação de Fever Ray, projecto liderado por Karin Dreijer, em tempos uma das caras-metade dos indecifráveis The Knife. Um manifesto político, cem por cento feminista e claramente sexual, onde a música surge sempre como inquietação e desafio.
Em palco, por entre o ar de cabaret e de dança sem varão, desfila um circo de aberrações, uma feira itinerante composta por freaks: Karin Dreijer, que ostenta uma T-Shirt onde se lê “I Love Swedish Girls”, parece saída de um episódio de The Walking Dead; há também um He-Man com celulite em estado avançado, uma Malévola de lingerie sexy, uma Sherazade com todo o ar de ter metido um ácido, um hobbit saído de terras havaianas e, também, uma Black Panther que reclamava para si o estatuto de super-heroína.
Sempre acompanhada de projecções visuais, com destaque para os vídeos que acompanham a rodela “Plunge”, que se afastou do disco de estreia e aproximou Fever Ray de uma versão 2.0 dos The Knife, Karin Dreijer e Cª apresentaram um concerto feito exclusivamente de pontos altos: a versão tribal e terrífica de “An Itch”, a recriação com um toque de trópicos de “When I Grow Up”, o delírio Kraftewertiano de “To the Moon and Back”, o kuduro esquizofrénico de “Idk About You” ou a densidade de If I Had a Heart”, a fazer lembrar o que os Massive Attack fizeram em “Mezzanine” – ainda que, em Fever Ray, tudo adquira um ar mais libertador e propício a exorcismos. Uma rave conduzida por extra-terrestres fora de órbita, que fez muito mais pelo respeito das diferenças do que manifestações de rua ou indignações em redes sociais. Respect.
Fotos: © Hugo Lima
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