Era uma das grandes incógnitas do NOS Primavera Sound: que público iria estar à espera de Lorde, a neo-zelandesa que, em 2017, nos brindou com a rodela pop do ano e que, já antes disso e quando não tinha idade para votar, conduzir ou beber shots, jolas ou qualquer outro líquido graduado num bar, tinha já gravado o magistral “Pure Heroine”, recebendo palmadinhas no ombro do ilustre David Bowie – que, então, lhe vaticinava uma carreira com a dimensão do mito.
Quem passasse pelo Palco NOS por volta das cinco da tarde, num dia em que o Porto mais parecia Glastonbury, julgaria ter dado de caras com uma excursão liceal ao Parque da Cidade, provavelmente para ver que espécimes habitavam este pulmão verde às portas de Matosinhos e com o aroma da maresia. Viam-se até algumas sweatshirts alusivas a Bieber, mas a verdade é que, no que diz respeito à pop com o sabor da pastilha elástica e a duração de um pacote de super gorilas, Lorde joga numa liga diferente de todos os seus pares.
Agora com 21 anos, Lorde continua a atrair a irrequietude da adolescência mas, à semelhança daquilo que nos oferecem os melhores romances literários, permite que outras gerações regressem atrás na linha temporal, àqueles tempos em que as preocupações maiores eram descobrir a melhor festa ou uma companhia porreira para terminar a noite em beleza.
Acompanhada de um grupo exemplar de dançarinos, teclistas discretos e um ecrã que ia ilustrando visualmente algumas das histórias sobre a efervescente e irrequieta juventude, Lorde vestiu uma indumentária cor-de-rosa sem ser choque, alternando entre os gestos teatrais, o diálogo com o público e as coreografias com os dançarinos, que a certa altura a transportaram no ar qual deusa a caminho de uma pira incendiária.
E, mesmo que com piropos da praxe como “há algo de especial em Portugal” ou “foi um concerto incrível”, Lorde conseguiu acalmar a histeria com momentos de grande intimidade, como quando, antes de oferecer uma interpretação de “Liability” que lhe saiu das entranhas, falou das músicas que escreveu no seu quarto em momentos de grande solidão, canções que eram dela e que passaram a ser de quem as ouve e as molda com as suas próprias experiências. Ou, ainda, do mantra que deve ser usado para quando toda a gente se afasta e nos deixa sozinhos na corda bamba: “fuck them”.
Não faltaram momentos altos, tendo quase todos os temas sido cantados em coro sobretudo pelas filas da frente, mas aquele instante em que os telemóveis se transformaram em lanternas, iluminando a fragilidade de “Liability”, a versão incrível de “Magnets”, malha que interpretou na companhia dos Disclosure, ou a incrível ponta final onde “Royals” foi mais do que um hino e “Perfect Places” serviu para extravasar “as emoções que guardaram ao longo dos anos para este momento”, ficarão na memória.
Lorde ainda desceu às grades cumprimentar os fãs em “Team”, momento em que por milagre todos pareceram conseguir avançar uns metros para ficar mais perto desta miúda que esteve sempre com um travesso e muito sincero sorriso nos lábios. “What the fuck are perfect places?”, perguntava Lorde no seu Melodrama. Ontem à noite, pelo menos durante uma hora, o Parque da Cidade foi mesmo um lugar perfeito. Palavra de fã.
Grande destaque também para Ezra Furman e o seu concerto de auto-transformação, que incluiu uma radiografia a cabeças assombradas, fugas de casa dos pais, anjos feridos num carro em contramão e muitos demónios interiores, onde a dor e a miséria são apaziguadas com a compra de um vestido. Tudo conduzido por um saxofone vertiginoso sacado aos Madness, resultando numa pop/rock de primeira água para ouvir com os lábios pintados de um orgulhoso vermelho.
Dos Foreign Poetry ficou uma folk com laivos de electrónica e ecos literários, banda que tem o primeiro longa-duração pronto a sair; das Waxahatchee, que parecem ter fugido à catequese e a uma vida de joelhos esfolados de tanta reza para praticarem o salmo do indie rock, ficou o espírito riot grrrl e uma country travessa, com direito a um belíssimo acústico servido por Katie Crutchfield que, antes disso, ainda cantarolou uns versos de “Homemade Dynamite”; os The Twilight Sad agradeceram o facto de a meteorologia estar solidária com o imaginário escocês, oferecendo uma prestação com o negrume dos Cure e uma linha musical que recordou os Editors de outros tempos; Tyler, The Creator teve apenas como muleta as projecções visuais, que iam de céus estrelados a palavras de ordem gritadas por muito boa gente, mas o incendiário espírito de MC não defraudou a fanzone – apesar de, por aqui, termos preferido ver mais rebuliço – e gente – em palco.
Fotos: © Hugo Lima
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