Meco, 2002. Por aquela edição do Hype@Meco, festival que tantas saudades deixou com as suas maratonas dançantes, passaram nomes como Jazzanova, Sofa Surfers, Rinôçérôse, Fila Brazillia, Zuco 103, Bossacucanova, Badmarsh & Shri com UK Apachi, S.u.n Project, Jazzanova, Nicola Conté Roger Sanchez ou DJ Vibe, que em comum tinham o apelo, mais ou menos acentuado, ao abanar de anca.
No meio deste cartaz estavam, estranhamente, uns noruegueses que alguns diziam ser a versão 2.0 de Simon & Garfunkel, que subiram ao palco contando apenas com guitarras alérgicas à electricidade e um piano de ar formal. E, mesmo com os ecos electrónicos que se escutavam ao longe como trovões, a banda ofereceu um momento de intimidade sussurrante, que terminou de forma épica com a dupla – já muito depois de ser ter ouvido “A Garota de Ipanema” -, num playback a preceito, a interpretar uma remistura que haviam feito para o japonês Cornelius, e que contou com uma coreografia de Erlend Oye que não lembraria ao diabo mais brincalhão e festivo.
Ainda nessa noite e já em modo DJ-cantor, Erlend voltaria a fazer das suas, cantando The Smiths e outros disparates por entre malhas fervilhantes e uma série de êxitos dos anos 1980, tudo enquanto ensaiava poses que, anos mais tarde, viriam a servir de inspiração aos modelos do filme “Zoolander”. Nascia nesta noite uma história de amor incondicional – pela banda mas sobretudo por Erlend -, que aumentou quando o alto norueguês andou a passear de barco em Paredes de Coura, corria então o ano de 2011.
Há seis anos a viver na Sicília, Erlend Oye teve direito a lotação esgotada no Capitólio na noite de 16 de Maio. E, se alguns acompanharam o percurso dos Kings of Convenience desde essa triunfante noite no Meco, muitos outros foram-se juntando pelo caminho, numa adoração que tem atravessado gerações.
“Hello Portugal, my name is Erlend“, começa por dizer ao mesmo tempo que apresenta La Comitiva, banda formada por três rapazes que conheceu na Sicília e que o acompanha em digressão. “Fence Me In”, a faixa que abre o longa-duração “Legao” (2014), serviu também de lançamento de uma festa que superou, por completo, tudo aquilo que se pode esperar de uma actuação ao vivo.
“Peng Pong” soa como um El Mariachi em versão serenata; o espírito dos quatro mosqueteiros surge em “Upside Down”, tema onde parecemos estar a assistir a um animado jogo de guitar hero, ao qual se juntam as primeiras palmas e estalares de dedos; com “Intentions” chega o primeiro e tímido toque de percussão, mas também um coro que, a roçar o falsete, faz pontaria à eternidade; “Bad Guy Now”, exorcismo de uma relação que pareceu deixar cabelos brancos e olheiras profundas, traz-nos à memória os Kings of Convenience.
“Falo italiano correctamente”, diz Erlend a certa altura num italiano impecável, tratando de apresentar a banda. Luigi, que toca cavaquinho – descrito por Erlend como um instrumento brasileiro, o que lhe vale uma vaia risonha ao qual este responde com um “não sei, é um grande instrumento”; Marco, que diz ter ido ao Miradouro de Santa Catarina, visto uma data de gente louca e feito uma visita ao Jardim Tropical na Ajuda; Steffano, com veia multi-instrumentista, que às cordas juntaria também os sopros e, a fechar a noite, o piano.
Há também um momento Itália, com uma malha que poderia ganhar o Festival da Eurovisão com uma perna às costas, seguida de “Paradiso”, uma canção sobre a siciliana Siracusa, segundo Erlend bonita no verão e abandonada no inverno, sobretudo pelos jovens que partem rumo ao norte para arranjar trabalho ou apenas se divertirem. Um tema onde Erlend decide fazer de Kurt Cobain, levantando o braço e abanando a cabeça para a frente e para trás como se lhe tivesse crescido uma cabeleira farta.
Um dos grandes momentos da noite acontece depois, com três temas instrumentais tocados ao fundo do palco junto a um microfone com ar antigo. “Uma experiência auditiva“, chama-lhe Erlend: a primeira, intitulada “Bologna”, escrita quando passaram pela cidade; no segundo tema toda a banda se vai juntando aos poucos, aparecendo pela primeira vez os sopros – e terminando com uma ovação incrível; por último, um tema escrito às seis da manhã na fronteira com o Perú, que encerra com uma declaração de Erlend que aumenta ainda mais o seu estado de graça: “Fico sempre nervoso quando fazemos isto, mas não em Portugal“.
Depois de “Garota”, que soa um pouco a Simon & Garfunkel em versão 2.0, e de “Every Party Has a Winner & A Looser”, estreada em modo concerto, Erlend fala de como na noite anterior, após terem terminado uma refeição, se deixaram levar pelo som de uma coluna carregada por uns brasileiros, que perguntaram a Luigi se a caixa que transportava escondia lá dentro um violino – era, na verdade, um cavaquinho. “O resultado foi este“, diz então Erlend antes de abandonar o palco para se misturar com o público, deixando a banda entregues a versões num brasileiro italianado, das quais conseguimos reconhecer “Maneiras”, de Zeca Pagodinho.
“Passo Amore” mostra um Erlend a fazer uma cena que poderia ser a de Lamar, seguindo-se “La Prima Estate” o hit italiano onde as filas da frente fazem a coreografia como manda o videoclip. A banda acaba por sair de palco aos saltos, empurrada por um coro que canta qualquer coisa como “para pá papará“.
Erlend regressa depois sozinho, colocando água na fervura com um versão muito despida “Heaven Knows I’m Miserable Now”, dos The Smiths, e mais um tema em italiano. A fechar, Steffano regressa para tocar piano numa belíssima canção, uma que Erlend sussurra um “from the tone of your voice I will know” – e, de facto, esta voz não engana ninguém. Ciao Erlend, tante grazie.
Fotos: Luís Sousa/Música em DX
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