Filosofia em estado indie, poesia em ponto de rebuçado, literatura com o espírito de As Mil e Uma Noites. Escrevemos isto a propósito de “Jalan Jalan” (Companhia das Letras), livro onde Afonso Cruz faz da literatura uma experiência religiosa – convidando até os mais ateus a benzerem-se – e em que mostra o mundo através dos seus olhos, dos escritores e dos filósofos que o marcaram e das pessoas com quem se cruzou nas suas viagens – físicas e mentais – pelo planeta. Tudo isto enquanto nos convida a uma reflexão interior de proporções épicas. Foi o livro do ano nacional de 2017 para o Deus Me Livro e, em jeito de celebração, estivemos à conversa com o autor na última edição das Correntes d`Escritas.
Encontramos em “Jalan Jalan” uma forte carga filosófica, de certa forma didáctica, onde se assume a partilha da experiência e do saber mas sem o desejo de doutrina ou evangelização. Trata-se de um convite à reflexão, o fazer da geografia também uma viagem interior?
Pensei, com este livro, trazer as experiências das minhas viagens mas também as minhas vivências culturais, talvez as duas coisas que mais me formaram intelectualmente – e depois conciliá-las. Quando escrevo, quando penso na verdade, tento conciliar coisas, encontrar pontos em comum. Não é algo que me esforce por fazer, acaba por acontecer naturalmente. Estou sempre a encontrar analogias entre áreas diversas, assuntos por vezes muito diferentes. No “Jalan Jalan” chego a usar a mesma metáfora para descrever coisas diferentes. Por exemplo, o Gregory Britten tem um diálogo a explicar à filha a entropia e, no caso dele, usa umas aguarelas. Eu uso um copo com umas canetas. Mas na realidade essa mesma metáfora pode ser aplicada em inúmeras situações da vida. Não só à entropia mas também à moral, ao bem e ao mal, à criatividade, a uma série de outras coisas. Isso sempre me fascinou. Não de um modo consciente, é a minha maneira de estar e de pensar.
Até porque parecemos no geral pouco receptivos ao saber…
As pessoas, de uma maneira geral, têm alguma dificuldade em lidar com o facto de alguém lhes poder ensinar alguma coisa. Não tenho pretensões em ensinar mas também não tenho pruridos em aprender, não me sinto de algum modo diminuído por estar a aprender alguma coisa. Por vezes há alguma resistência quando isso acontece, mas o que é bom nisto é a partilha, absorver o que não sabemos e partilharmos o que julgamos saber.
Há uma frase do Alfred Kazan que partilhas que diz que “Deus é apenas o nome para o nosso deslumbramento”, uma frase capaz de colocar cristãos e ateus em festa.
Mais ou menos (risos). Porque o que acontece na prática, se fores afecto a uma religião, é que essa definição de Deus não irá corresponder na totalidade à tua. Sentes que não é propriamente Deus, que até poderá ser uma forma de ateísmo. Quando se chega a um Deus demasiado lato, como acontece com os católicos, esse Deus não tem significado, é uma forma encapotada de ateísmo. Acontece também com algumas formas estranhas de panteísmo, uma espécie de adoração à natureza: não acredito em deus mas a natureza tem aqui uma harmonia, uma inteligência… No fundo estamos aqui a substituir palavras. Às vezes, quando se fala em Deus, é preciso saber de que Deus, ou de que definição ou ideia de Deus, estamos a falar. Por exemplo, os maniqueístas acreditam que existe um deus luminoso e um deus das trevas, que estão a competir, a lutar um contra o outro. O que faria do deus luminoso um deus limitado, não omnipotente, que existe no tempo, o que lhe confere características que não iriam ao encontro do deus católico. Há portanto inúmeras definições de deuses.
Julgo que não serás crente, não sei.
Eu também não sei (risos).
Falo disto porque o “Jalan Jalan”, e boa parte da tua literatura, têm um tom religioso no sentido espiritual. Poderemos falar de uma religiosidade sem Deus?
Há uma questão interessante em relação à consciência. Apercebemo-nos dela no sentido horizontal, ou seja, de consciências que sejam como as nossas ou semelhantes às nossas. Mas não temos essa mesma consciência em relação à verticalidade. Em relação a um glóbulo branco, ou a uma cidade, não sabemos se serão ou não conscientes. Achamos que não, à partida, mas apenas porque não temos a mínima noção da verticalidade. Há uma experiência mental, chamada china brain, uma experiência antiga, onde a ideia seria dar um rádio a cada chinês que comunicariam entre si, levantando a hipótese de isso ser semelhante, de alguma forma, aos nossos neurónios. Poderia isso criar uma consciência? Acho que nunca chegaremos a saber, mas é muito difícil sair desta dimensão horizontal a que a consciência foi vetada. Por isso mesmo seria uma arrogância da minha parte limitar à partida a noção ou a existência de consciências superiores a minha. E, neste sentido vertical, qualquer consciência superior à minha poderá ser também uma ideia de Deus, ainda que possa ser um Deus pessoal ou ter uma outra forma. Quando imaginamos os livros de ficção científica, sobretudo os dos anos 50 e 60, os extraterrestres têm formas de insectos, de homens verdes com antenas e muitas vezes a aparência de polvos – como no “The Arrival”, um filme bonito. O que acho é que uma consciência, uma inteligência capaz de viajar milhares de anos de luz, é incompreensível para nós. No último volume da Enciclopédia escrevi um texto sobre isso, uma consciência cósmica formada por planetas e estrelas. Não sabemos se tal existe ou não, ou se a Terra poderá ser uma espécie de ser vivo. É muito difícil definir essas possibilidades e, nesse sentido, sou mais agnóstico. Por outro lado gosto muito de um princípio que começa em Platão e que foi desenvolvido por Plotino, que é o princípio da plenitude, que diz que tudo o que tenha possibilidade de existir existirá. E nesse sentido também poderemos assumir que uma consciência superior à nossa terá de existir.
Falaste da Enciclopédia, e neste livro encontramos alguns pontos de contacto, mas com o twist de a ficção ter cedido um pouco o lugar à recordação e à experiência. De certa forma é um livro íntimo, algo que na escrita encontramos nas memórias ou nos diários, que num escritor encontramos normalmente numa fase mais tardia.
A literatura de viagens tem um pouco esse registo mais pessoal, mais íntimo. No meu caso, como faço umas leituras por outras áreas, vou acrescentando também experiências minhas de outro tipo, algumas mais pessoais, sem desvelar muita coisa da minha vida.
“Um passo fora de casa e começamos a desenhar o mapa do mundo”. Quando percebeste que a tua cena era andar fora de casa?
É difícil determinar começos, mas lembro-me de trabalhar numa produtora de animação quando um colega meu decidiu – estávamos em 1991 – ir sozinho para a América do Sul. Achei aquilo extraordinário, porque as viagens que imaginava eram a capitais europeias, fazendo o inter-rail na companhia de amigos. E de repente há este tipo que vai sozinho para países do qual sabe muito pouco, viajar durante meses sem nada marcado, algo que achei muito corajoso e me levou a pensar que nunca teria esse nervo, essa vontade ou capacidade de fazer a mesma coisa. Mas curiosamente deve ter ficado ali qualquer semente, porque passado um ano estava a fazer uma coisa muito parecida, apesar de no meu caso ter tido a ver com os livros que lia.
Fala-se muito das diferenças entre o nomadismo e a vida sedentária, mas fica a ideia de que o regresso – ou o retorno, se preferires – é uma das melhores partes da viagem.
O ideal, para termos uma vida boa, será sempre encontrar um equilíbrio entre estes tempos: entre o presente e o futuro. Os livros de auto-ajuda focam-se muito na ideia do presente, de que seremos mais felizes pensando dessa forma, mas acho que o futuro e a imaginação – a esperança – são essenciais. As sociedades que ficam agarradas ao presente, as nómadas, são sociedades que vivem quase dia a dia e que não acumulam. Não têm livros, por exemplo. Apesar da ideia de acumular coisas, de ter coisas, ser bastante negativa em alguns aspectos, há certamente um lado positivo. Um bom exemplo é a gravação das memórias, de eu poder ler as palavras de Platão e de saber o que ele disse. E isso só é possível através dos livros, uma ferramenta típica de uma sociedade sedentária.
“Voltar à infância é a única maneira de alcançar a maturidade”, lê-se a certa altura. “Jalan Jalan” foi também um regresso à infância, à juventude?
O livro fala muito disso, dessa viagem circular. Ainda em relação aos nómadas, eles não fazem uma viagem só de ida, na verdade têm o seu próprio ciclo e retornam aos lugares de onde saíram. Algo que parece ser omnipresente em quase tudo o que fazemos, quase como a própria tipologia do universo. A própria Literatura e muitas vezes a História são um afastamento para reencontrar o local de origem, ainda que não voltemos exactamente ao ponto de partida. O nosso mundo não e tridimensional, uma vez que há também o tempo. Brinco com isso numa história da Enciclopédia, onde um homem viaja decidido a provar que a terra não é redonda. Dessa forma, quando regressa a casa dos pais passados 40 anos, encontra não a casa destes mas um escritório de advogados.
“Ser mais é radicalmente diferente de possuir mais”. A veia política que encontrámos em “Flores” sobressai, com uma forte crítica à sociedade capitalista, ao consumo desenfreado e aos banqueiros.
Não considero o acumular por si só errado. Do que não gosto e da inversão das prioridades, de usar as ferramentas que servem para atingir um fim como um fim em si mesmo. Quando olhamos para o dinheiro simplesmente para acumular, e não para o usar como ferramenta, na verdade estamos a ser escravizados por ele, damos-lhe um valor que à partida não tem. Quando invertemos isso as coisas na nossa vida tendem a começar a falhar. Não há mal nenhum, por exemplo, numa pessoa casar-se e ficar rica com o dinheiro da mulher. O problema é se instrumentalizamos o amor.
Falas também da última fase de domesticação do ser humano, onde o trabalho surge como um eufemismo da escravidão. Como seria imaginar o mundo sem essa chatice do trabalho?
Sempre foi essa a esperança. A tecnologia supostamente libertaria o homem do trabalho, o que não tem acontecido. O que não quer dizer que não se chegue a esse ponto, de um dia as inteligências artificiais serem superiores às nossas– mesmo que não acredite na dicotomia homem-máquina. Na verdade não acho que as maquinas serão um dia mais inteligentes do que o ser humano, acredito é que nós próprios nos iremos transformar em máquinas. Vamos incorporando memória, um pouco como já acontece com os telemóveis e com o Google, ainda que de forma arcaica. Mas estamos a caminhar para esta ideia de memória expandida, orgânica, em que fazemos uma pergunta e já sabemos a resposta sem precisar de ler. Um momento inconcebível. O que agora se evolui numa década demorava milénios a acontecer.
“Quando estás comigo, fico acordado toda a noite. / Quando não estás, não consigo dormir. / Louvado seja Deus por essas duas insónias / e a diferença entre elas”. Rumi é uma referência para ti?
Penso que era alguém muito inteligente, e não apenas no conteúdo da escrita. Estamos a falar de alguém que viveu no século XIII, de alguém muito tolerante, muito mais tolerante do que se é hoje em dia. Não só era excelente nos poemas e nas pequenas anedotas como também formalmente, os seus textos são lindíssimos. Tanto que nos Estados Unidos creio que é um dos poetas mais vendidos, ainda que se tenha que ter em conta o facto de o tradutor ter adaptado os poemas ao estilo moderno, tirando-lhes alguma islamização. É de facto um poeta extraordinário.
“Hoje em dia os pitagóricos tomariam suplementos de vitamina E e ómega 3, comeriam superalimentos, teriam horror ao glúten e à lactose e jamais tocariam num pão nem num copo de leite, mesmo que fossem perseguidos por soldados”. Esta paranóia que hoje vivemos um pouco com a higienização do corpo e a adoração pelas couves vai pôr em risco as tripas à moda do Porto ou o arroz de cabidela. E se somos o que comemos, o que seremos daqui a uns anos?
Sabemos que as dietas de povos como os esquimós são diferentes dos outros povos do planeta, e isso não faz deles humanos substancialmente diferentes na sua alma. Acho que a geografia acaba por ser mais influente no nosso temperamento do que a alimentação. Hoje comemos basicamente tudo, o que é também uma característica humana. No caso do leite, por exemplo, há aquele argumento absurdo de que somos o único mamífero que bebe leite depois de adulto. Porque também somos o único que cozinha alimentos, e só temos o cérebro deste tamanho porque começámos a cozinhar, o que nos dá mais energia do que aquela que recebemos de um alimento cru. Somos um homem tecnológico desde sempre, um ser que precisa de instrumentos, de ferramentas. E temos ferramentas desde que existimos: as roupas, as lanças, nascemos com esses instrumentos. E com a comida e igual, o ideal será não exagerar. O que normalmente acontece é que comemos demais.
A tua ida para o campo mudou um pouco a tua visão do mundo?
Algumas coisas, sobretudo as minhas ilusões enquanto habitante da cidade. Há muitas ideias que não correspondem à verdade, muito idealismo em relação à ideia algo new age da harmonia com a natureza. Viver no campo é uma luta constante, contra as ervas daninhas, as pragas, os insectos, implica um trabalho constante de arredar a própria natureza das coisas que fazemos.
Também estás relativamente perto da civilização, como o Thoreau esteve no Walden.
As grandes diferenças sociais estão no nomadismo e na sedentarização e não no campo e na cidade, no capitalismo e no comunismo. Porque todas elas são sociedades que se baseiam no acumular de coisas – a distribuição já é uma coisa diferente. O acumular é essencial para a sobrevivência. Nesse sentido difere muito pouco, ao passo que na sociedade nómada não há um acumular de bens, não existe propriedade privada, não há noção de trabalho, não há prisões, não há castigo, e nesse sentido é uma sociedade completamente diferente. A mudança da cidade para o campo não altera quase nada, excepto a paisagem. Apesar de tudo temos alguma relação com a natureza, mas não nesse sentido quase idílico.
Ficaste um pouco com este estigma e, em jeito de brincadeira, não poderia deixar de te perguntar isto: como seria o mundo sem cerveja?
Há a teoria de que o homem só se sedentarizou por causa da cerveja. E é uma teoria sustentada, não uma palermice qualquer ou puro devaneio. Ninguém sabe muito bem porque é que o homem se sedentarizou, ate porque ser nómada dá menos trabalho – trabalho menos horas por dia e não tenho a noção daquilo a que Marx chamava o trabalho alienado. Portanto a passagem para a sedentarização é um fenómeno relativamente estranho, e há quem diga que foi precisamente por causa da cerveja, apostando na teoria do macaco bêbado. O açúcar na natureza é muito raro, e o cérebro está altamente preparado para o encontrar. O etanol – o álcool – é composto por partículas muito leves, e quando o fruto está muito maduro começa a fermentar. Ou seja, solta etanol, uma fonte de açúcar, que viaja imenso, mais do que outras moléculas. O que acontece é que éramos capazes de pressentir o álcool a grandes distâncias, e percebíamos que ali havia açúcar. Portanto há quem diga que descemos das árvores precisamente por causa dos frutos que já estão fermentados. Erasmo dizia isto em relação à loucura, mas também o podíamos dizer em relação à bebedeira: se calhar não tínhamos filhos sem um bocadinho de álcool. É preciso uma certa loucura para nos multiplicarmos.
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