“O que Perdemos” (Minotauro, 2018) é o primeiro romance de Zinzi Clemmons, escritora norte-americana que cresceu em Filadélfia, filha de mãe sul- africana e de pai americano. Uma obra que relata a viagem íntima de auto-descoberta da personagem principal, uma afro-americana de nome Thandi, (também) nascida na América “no momento em que o Apartheid morria”. Alguém que, (também) sendo filha de mãe sul-africana activista contra o Apartheid – mas de classe alta – e de pai nova-iorquino – professor universitário -, tem dificuldade em encontrar o seu lugar no mundo (nem é negra nem é caucasiana), confrontando-se com a grande dor de perder a mãe, tendo de lidar com emoções fortes e os seus encontros com o amor, que dão origem a uma inesperada maternidade da qual tomamos conhecimento logo no Prólogo do livro.
Zinzi Clemmons tem uma prosa quase experimental e aparentemente tacteante, poderosa e arrebatadora e, nesta obra, consegue simultaneamente expor profundas reflexões emocionais, que tocam o leitor sobre a perda de alguém muito importante na vida, e revelar a intensa busca por uma identidade pessoal.
“O que Perdemos” é verdadeiramente um estudo – transgressivo, cru, vulnerável, sexual e pungente – sobre o desgosto e os efeitos do desgosto nas várias facetas da vida. A personagem principal tem de lidar com a doença oncológica da mãe, cada vez mais incapacitante e, depois, com a sua morte, numa comovente e emotiva descrição/meditação sobre a morte, o amor e a permanência, onde a própria identidade não é apreendida: “Tenho pensado muitas vezes que ser uma mulher negra de pele clara, é como ser uma pessoa bem-vestida que também é sem-abrigo”.
Uma obra sobre a força humana centrada no multiculturalismo, na violência do pós–Apartheid na África do Sul (o outro “país Natal” de Thandi), na política, no racismo (sobretudo ao perverter a verdadeira amizade entre mulheres – “não te dês com raparigas negras Thandi”, diz-lhe a mãe), na miscigenação (a mãe arrastava-a desde os 5 anos para o cabeleireiro, de dois em dois meses, para alisar quimicamente o cabelo e tornar-se “uma menina bonita” ) e na família.
Na hora da morte, a mãe de Thandi mostra querer regressar à “sua casa” na África do Sul, uma aparente incongruência ou contradição que a autora transforma no fino recorte da condição humana, de quem não é negro ou branco, africano ou americano, rico ou pobre: de quem está sempre confinado a ser meio.
A analogia com a vida da autora é inevitável: a mãe de Zinzi Clemmons, sul- africana, morreu de cancro cinco anos após o diagnóstico, tendo esse acontecimento coincidido com a altura em que a autora começou a escrever o romance. Zinzi Clemmons expressou, numa entrevista em 2017, que “é muito difícil escrever sobre a nossa família – eu deveria ter-me abstido( …) mas penso que é por isso que me sinto tão orgulhosa de o ter feito, porque nada retive dentro de mim.”
O livro está muito bem escrito, com um grande sentido de cadência da história que atravessa fases de fúria, dor e insatisfação pessoal. A paginação revela-se surpreendente, havendo páginas completamente escritas e outras que apenas consentem uma ou duas frases, psicológicas e por vezes enigmáticas, intercaladas por páginas com fotografias de pessoas não identificadas pela autora mas que se relacionam com o evoluir da narrativa – e, igualmente, gráficos que ilustram as afirmações da personagem principal que, ao que tudo indica, é o alter -ego da autora.
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