“Ditadura? É melhor virem ao meu consultório e deixarem-me examinar as vossas cabeças, porque a América é a única nação livre da Terra. Além disso, o país é grande demais para uma revolução. Não, não. Isso não pode acontecer aqui!”
O que aconteceria aos Estados Unidos da América se um ditador chegasse ao poder? A resposta é dada em forma de romance satírico por Sinclair Lewis, o primeiro escritor norte-americano a receber o Prémio Nobel da Literatura que, desde logo, firma a sua posição: “Isso Não Pode Acontecer Aqui” (D. Quixote, 2017).
A obra conta a história de um candidato improvável: um demagogo, xenófobo e racista que, apesar de praticamente iletrado, consegue vencer as eleições presidenciais, com a promessa de fazer da América um “país orgulhoso e rico”. É caso para dizer que este poderia ser um retrato da recente ascensão de Donald Trump ao poder, não fosse a obra ter sido publicada em 1935, o que a torna “ironicamente profética, assustadoramente contemporânea”.
“Isso Não Pode Acontecer Aqui” volta merecidamente à ribalta com a eleição do actual presidente dos EUA, mas foi escrito durante a Grande Depressão e publicado quando o fascismo começava a emergir, de forma alarmante, na Europa. Sinclair Lewis mistura personagens reais e ficcionadas numa distopia onde Buzz Windrip — que inicialmente em quase tudo associamos a Donald Trump, à excepção do cabelo “áspero, negro e liso” — derrota Franklin Roosevelt.
Esta cómica tirania é apresentada ao leitor maioritariamente pela perspectiva de Doremus Jessup, um jornalista crítico que procura resistir à opressão do eleito, mesmo quando este acaba por instalar um regime ditatorial apoiado por forças militares repressivas. O controlo da imprensa e o aparecimento da propaganda clandestina são apenas duas consequências da defesa, em discursos inflamados, da perseguição aos judeus e aos negros, do “reforço do armamento, não para provir à guerra… mas para manter a paz”, da resolução do problema no México e da prática de uns subornos para manter a máquina política fiel.
Através da personagem Jessup, defensor da democracia sobre o comunismo e o fascismo, o autor vai caricaturando o eleito como um “actor genial” com uma “encenação superficial”, que vai conseguindo com mestria conquistar o voto dos eleitores, que acreditavam que “iam ficar ricos apenas por votarem para o serem”, num país que consigo passaria a ser “eficiente e próspero”. O jornalista não consegue explicar o seu poder em cativar grandes audiências: “O senador era banal, quase iliterato, um mentiroso facilmente detetável e, nas suas ideias, quase idiota; enquanto a sua célebre piedade era a mesma de um caixeiro-viajante de mobiliário de igreja, o seu ainda mais notável humor era o cinismo matreiro de um balconista de loja de província”.
O desfecho é dramático, como é pedido a uma história provocadora que, há mais de oitenta anos, fazia uma crítica mordaz, chamando a atenção para os perigos do populismo tendo por referência a consolidação do poder de Hitler na Alemanha. Num registo irónico mas elegante e inteligente, por vezes até mesmo exigente para o leitor, o autor leva-nos numa reflexão política que, inevitavelmente, se torna assustadora quando a vemos colada à realidade actual.
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