Nasceu no Rio de Janeiro, filha do actor Fernando Torres e da actriz Fernanda Montenegro. Estreou-se nos palcos em 1978 com “Um Tango Argentino” e, desde então, dividiu-se entre peças de teatro, telenovelas e filmes, alcançando o estrelato com a sua prestação em “Os Normais”, uma série de culto no Brasil e mais além, e no monólogo “A Casa dos Budas Ditosos”, de João Ubaldo Ribeiro.
Depois de alguns anos como colunista na Folha de S. Paulo, na Veja Rio e na revista literária Piauí, aventurou-se no romance com o livro “Fim” (Companhia das Letras, 2015), uma aventura que conheceu este ano um novo capítulo com a edição de “A Glória e o Seu Cortejo de Horrores” (Companhia das Letras, 2017). Um livro que nos conta a história de ascensão, queda e redenção de Mário Cardoso, um actor de meia-idade caído em desgraça depois de uma versão falhada de Rei Lear. Uma tragicomédia que, para lá de um drama pessoal, oferece um retrato do Brasil das últimas décadas.
O Deus Me Livro esteve à conversa com Fernanda Torres, que passou por Portugal para nos falar da sua Glória.
O cenário vivido por Mário Cardoso é todo ele de catástrofe: o despiste teatral, a loucura da mãe que o confunde com o marido, o ressentimento de não ter filhos, o revisitar dos amores falhados, o buraco contabilista, o apelo do álcool. Será esta uma personagem toda ela Shakespeariana em busca da redenção?
As pequenas tragédias, as falhas humanas, dão óptima literatura. “O Fim” também era feito de personagens absolutamente falhadas, mostrando a hora em que se dão conta das próprias falhas. Os personagens do Shakespeare, a sua obra, é toda ela sobre a falha. A Glória tem também essa dimensão da falha humana, mas num ambiente da tragicomédia, de uma falha burguesa, sem a grandeza dos reis. Uma das dificuldades de fazer Shakespeare no Brasil é a de não haver a consciência da realeza. Sempre que vejo um europeu – ou mesmo um americano, porque o americano herdou Roma -, percebo que compreende o poder de um rei. O Brasil não tem isso, o nosso Shakespeare é o Nelson Rodrigues, que fala da pequena classe média. Acho que a medida é essa: a da pequena tragédia do homem pequeno, em busca de uma saída diante de tantos enganos.
Há aqui alguma dose de auto-biografia através de um outro?
Há sempre uma dose de autobiografia em toda a literatura, tudo é autobiográfico. O Oscar Wilde tem esta frase: “Toda a crítica é uma autobiografia“. No dia em que li isso passei a encarar a crítica de uma maneira mais ampla – não que ela não seja verdadeira. Li recentemente uma biografia do Napoleão, onde achei que o autor o destratava. Pulei então para uma outra onde o autor o respeitava demasiado. Apesar de serem ambas biografias, havia também uma enorme dose de autobiografia. Acho que o romance acaba por ser autobiográfico, porque a medida é você: a janela é o seu olho, o seu ouvido, a sua consciência, a sua pele. Fiz também esse Rei Lear, quando fui Cordélia tive um problema de acessos diários de riso durante um mês, e por isso resolvi que ele começaria…
Com as fraldas….
(risos) “O Peligalo sentou no monte Pintocano…“. É engraçado porque as pessoas tendem a achar que este livro, por exemplo, mais autobiográfico e referente a mim do que “O Fim”, que é inteiramente autobiográfico, pleno de coisas que vivi embora estejam mais escondidas. Estou lendo “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, uma edição que tem muita nota de rodapé explicando a toda a hora que muito do que ali está foi algo que o autor viveu. Então é sempre autobiográfico.
Regressemos ao mestre. “De que vale Shakespeare diante de uma novela das sete?”, pergunta-se a certa altura. O mais curioso é que, contra todas as expectativas, “MacBeth” acaba por se transformar numa novela para as massas. É tudo uma questão de perspectiva?
É isso que é incrível no Brasil, as adaptações de Shakespeare para favela sempre funcionam. A favela é um feudo, um lugar medieval, com reis e batalhas entre territórios. Toda a adaptação, seja da tragédia grega, de Shakespeare ou do teatro clássico funciona. Por isso queria que a personagem caminhasse para a prisão, era uma intuição que tinha sem saber se seria crível. Como fazer aquele actor acabar ali? Mas sentia que seria ali que iria descobrir como é possível fazer Shakespeare no Brasil – foi algo que me perseguiu.
Até porque fala do Rio de Janeiro como uma Cornualha, numa imagem particularmente feliz do romance. Romeu e Julieta poderiam ter andado embrulhados numa favela do Brasil?
Toda a adaptação de Shakespeare funciona porque há o sentido do poder, do comando, do território. Existia uma frase logo no início, onde ele diz que tem sentido de humilhação para fazer o Rei Lear mas lhe falta a nobreza para carregar uma coroa. Nós rimos de Joões e de Pedros, tratamos João VI como um monarca risível. Ele fugiu de Portugal mas, ao mesmo tempo, foi um homem e um estrategista impressionante, que manteve a coroa mesmo depois de Napoleão ter invadido o seu território. A medida do Brasil, do poder no Brasil, é o de uma elite mediana. O Rio é uma Cornualha.
Um pouco como no filme “A Cidade de Deus”.
Exactamente, é o lugar onde a tragédia se dá. Quando ascende ao poder, um chefe de tráfico é Shakespeariano – e morrerá jovem.
O Teatro é só para gente de esquerda?
No livro isso tem muito a ver com aquela época, em que na Arte não havia como não ser de esquerda diante de uma ditadura militar. Aí, o único lugar possível era o da esquerda. Hoje a esquerda é algo mais confuso. O mundo é liberal e a discussão passou a ser a do tamanho do Estado. Adoro aquele capítulo em que vão fazer teatro político e convencer os lavradores a pegar em armas.
Mas quando chega a hora fogem.
(risos) Ele era um artista, não um revolucionário. O João Gilberto, por exemplo, não é de esquerda mas é um revolucionário.
Era um pouco uma provocação. Hoje em dia persiste a ideia de a cultura ser exclusiva da esquerda.
A esquerda é identificada com valores humanos, liberais, que levam em conta a necessidade do outro. Por isso é natural que a arte se identifique com esses valores. A direita, ou o liberalismo, é muito calcado na ideia de que é a competição e o livre mercado que trazem riqueza. Mas por outro isto é algo paradoxal, porque a esquerda deu em regimes totalitários contrários à arte. Não sei se havia liberdade na Rússia, por vezes os lugares liberais tendem a ser mais democráticos e livres na arte do que aqueles onde o Estado tem uma presença mais forte. No Brasil grande parte da população vê a classe artística como mamadores da teta, uma elite que fica dragando dinheiro público. O lugar é da esquerda pelo valores humanos mas, por outro lado, o controlo estatal tende a torná-la presa.
E é interessante, durante o livro, a mudança do teatro como luta armada para uma outra forma mais desligada do mundo e concentrada na arte, enterrando de certa forma as convicções políticas: “Sepultei a luta armada, a militância, queimei as fotografias do Che, joguei fora o Marx, o Marcuse e o Brecht. A realidade é horrível, eu não queria mais saber dela. Covardia? Que fosse.“
Eu me interesso pelo existencial, tanto nas peças como nos livros, independentemente da corrente política ou económica vigente. Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, foi taxado de reaccionário. E, durante essa época, outros autores – mais sub-autores – de esquerda, eram incensados, ao contrário do Nelson que era tratado como um cachorro morto. Só que, mesmo reaccionário, Nelson Rodrigues era muito maior que o sub-esquerda, por ser existencial, de um lugar que não é de direita ou de esquerda: pertence à arte.
Fala-se aqui muito de cinismo. Ser cínico é uma das condições de sobrevivência para um actor?
O cinismo é um perigo para um autor. Escrevi isso porque me lembro de ter descoberto Flaubert, o primeiro autor que li em série, e de ter ficado fascinada com ele. Flaubert é de um cinismo cortante, trata mal as personagens, fala da pequenez do homem. Lembro-me de ter ficado cínica, de isso ter agido sobre a minha profissão de actriz. Então acho o contrário: um actor deve ter muito cuidado com o cinismo (risos). É um perigo. O Mário fica cínico, a certa altura faz essa pergunta: em que hora me tornei num cínico? É preciso manter a humildade.
A figura do encenador é uma das mais cativantes neste romance. Há quem tenha manias de grandeza, venha de exílios forçados, ou aposte em tentativas de conversão marxistas. Encenador que é encenador tem de ser louco?
Há uma certa loucura no encenador. O do cinema então é um louco absoluto. O cinema é grande, é caro, por menor que seja move equipas, equipamento, tecnologia junto do ser humano, tudo para aquilo que eu chamo de “The vision” (risos). Isso era algo do segundo filme da Família Adams, que começa com os dois filhos numa colónia de férias americana, encenando o dia de acção de graças, o dia do peru, e os dois bruxinhos destroem tudo. A uma hora, a realizadora berra “you are destroying my vision!“(risos) Aí eu sempre brinco com o meu irmão, que é director, ou com o meu marido que é também director: “E aí, a vision?“. Acho que há sempre uma loucura no director, uma prepotência de criar um universo, um mundo, de mover pessoas para se aproximarem daquilo que ele concebeu. Não se vira encenador sem uma grande dose de loucura.
Cinema, Teatro ou Televisão, onde se sente mais em casa?
Sempre gostei de rodar, um sempre me salvou do outro quando achava que me estava repetindo, ajudava a reinventar-me. Sempre rodei cinema, teatro e televisão e, de certa maneira, a literatura entrou também nessa roda da fortuna. Uma hora você precisa dar um pulo ali do lado para se ver de fora e voltar diferente.
“A nudez era a condição primeira, sine qua non, para se provar um ator.” Para se ser uma boa actriz é preciso não ter vergonha de andar pelada, ou pode-se ganhar um Oscar vestindo sempre sobretudo ou gola alta?
Eu acho que sim. Comecei a fazer teatro nos anos 70, o maio de 68 tinha acabado de acontecer em Paris e aquela loucura toda se espalhou pelo planeta: a liberdade física. E isso existe no teatro, você tem que aprender a tocar o outro, a não ter vergonha. É uma profissão emocional e física. Naquela época a resistência também passava pela liberdade sexual, assim como o feminismo passava por mulheres que posavam nuas, que eram donas do seu corpo. O sexo era sinónimo de liberdade e resistência, mais do que é hoje.
Agora quase que há um medo de tocar.
É o contrário, também é perigoso. É incrível como o ser humano gosta de extremos, a gente nunca consegue o meio. É parte de uma globalização e de uma americanização do mundo. O americano é mais puritano, vem de uma sociedade – como diz um amigo – que acha o sexo violento e a violência sexy.
Assistimos também a um regresso à infância, primeiro doloroso e nostálgico no pior dos sentidos, depois estranhamente acolhedor. Será a infância um barómetro da sanidade, um lugar simultaneamente de conforto e desconforto onde, por vezes, é necessário regressar para seguir em frente?
Curioso, eu não tenho uma sensação feliz da infância. Quando olho o meu filho – o mais velho não, teve uma infância Beethoven -, acho que teve uma infância plena. Me lembro de o mundo ter começado a ficar bom a partir dos 16 anos. Acho que a infância tem essa mistura de um lugar acolhedor – exactamente isso que você falou -, onde existe um acolhimento, o seu mundo se restringe a você, é um mundo pequeno. Quando o Mário regressa à Tijuca inveja aquele mundo infantil de um subúrbio que fica feliz com a festa de fim do ano, o carnaval, o programa de auditório, e lamenta ter perdido essa inocência. Ignorante às vezes, mas acolhedora. E depois são essas pessoas que o acolhem quando ele enlouquece. Assim tenho sentimentos dúbios em relação à infância: não a vejo como algo feliz mas, ao mesmo tempo, tenho um enorme saudosismo da minha infância passada em São Paulo, entre os meus 2 e os 5 anos de idade, que reconheço como acolhedora.
O Brasil não fica muito bem na fotografia. Se São Paulo surge como uma cidade suja e mal-cheirosa, o Rio é a cidade onde “a pior desgraça…é o pavor de dobrar a esquina”, “o ralo do ralo de um país sem esgoto”. Como olha para o Brasil nestes dias?
Eu amo o Brasil, me reconheço como brasileira, a cultura brasileira é a minha referência para o mundo: Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Tom Jobim. O Brasil não é um país desprovido de carácter, é muito rico, agora neste momento é um trem descarrilado, assustador, violento. É grande, tem muita população, e uma desigualdade social que nunca foi resolvida, que parece não ter solução. E tem uma elite política e económica que sempre trabalhou para si mesma. Agora atravessamos uma hora em que os dois partidos que seriam de esquerda agiram no poder como a mais vil classe em proveito próprio. Passamos por um período muito complicado de descrença nas instituições, na política, na economia, porque antes, depois da ditadura, pelo menos você caminhava para uma democratização. Partidos como o PT ou o PSDB estavam em formação, e agora é como se não houvesse futuro. Um partido desses demora 20 anos para se formar, com bases sociais e pessoas ligadas. Estamos vivendo um momento muito assustador, mesmo trágico. Os quatro últimos governadores do Rio de Janeiro, há dois meses atrás, estavam presos por corrupção. É um país trágico e ao mesmo tempo solar, luminoso e feliz, me explica isso! Você acorda de manhã no Rio e sente uma sensação impressionante, de estar vivendo naquela falha geográfica. O desacerto é terrível, mas reconheço-me como brasileira ligada à minha cultura, filha da minha cultura. São Paulo é isso, uma cidade que eu adoro mas que cheira mal (risos). Uma tragédia urbanística, não tem árvores, é um caos urbano O Brasil sofre disso, tudo chega em grandes proporções: o tamanho, as riquezas, os problemas.
Ainda consegue ser mais emotivo do que nós.
Portugal é melancólico. Mas está muito feliz agora. Mas é menor, é um país com menos pessoas e menos desigualdade social. A escravidão não se deu aqui, deu-se lá. A questão da escravidão nunca foi resolvida no Brasil, foi o último país a acabar com ela. Eu visitei essa prisão. É uma loucura, fica ao pé e é a continuação de uma favela. O livro inteiro é um reflexo do Brasil, e as suas riquezas também estão lá. Por isso não sei se sai assim tão mal na fotografia.
“Que importa a dicção nefasta ou a cultura pífia, diante de uma lágrima honesta?”, lamenta-se Mário Cardoso. A partir de certa altura, o humor entrou na sua vida ganhando aos pontos ao drama. Prefere o lado mais risível e divertido da vida enquanto actriz?
Prefiro a tragicomédia. Acabei de receber o convite para fazer dois filmes seríssimos. Gosto sobretudo de bons papéis. Agora o trabalho de três anos com a Vani foi extraordinário, uma série muito bem escrita, onde eu me encontrei. Adoro o humor, até na minha escrita ele chega atravessado com uma certa tragédia.
Três décadas depois de “Selva de Pedra”, admitiu que poderia participar numa novela a tempo inteiro.
Eu não sei onde falei isso. Este ano vou fazer o “Sob Pressão”, dois filmes e uma série chamada “Filhos da Pátria”, que talvez tenha uma segunda temporada. Acho que é fake news (risos). Mas não estou fechada a isso.
Sem Comentários