“No ano seis da era Showa (1931), há cerca de 60 anos, as crianças dividiam-se em facções e lutavam todos os dias. Dias de lutas cruéis sem brincadeiras. E quando a noite cai, começo a entrar no meu mundo da imaginação. Sim, para além deste mundo existem 10 biliões de outros estranhos mundos. E é assim que entro nos meus desenhos e canto as canções que eu próprio escrevi.”
Bem-vindos a “Nonnonba” (Devir, 2017) e ao fascinante mundo de Shigeru Mizuki, uma auto-desenhada biografia que encerra uma história de amizade, amores com cicatrizes, criaturas sobrenaturais, rixas de miúdos, dramas escolares e um olhar sobre o peculiar universo cultural e social japonês.
Nonnonba era a designação local dada às mulheres idosas, devotas à religião, da cidade de Sakaimanato, na província de Tottori, com origem em Non Non-Sama, a deusa budista Kannon Bosatu. Será a avó de Mizuki, também ela tratada como Nonoonba, que depois de não se conseguir sustentar rezando pelas pessoas se irá mudar para casa deste, que ficará deliciado com a perspectiva de todas as noites ouvir histórias com monstros, fantasmas, goblins e outras criaturas sobrenaturais.
Não muito dado à matemática, o pequeno Mizuki deita-se tarde a desenhar histórias como a da Aventura do Misterioso Nariz, numa família onde os pais são um Yin e uma Yang: o pai é mais dado às artes, querendo aproveitar a experiência cultural que adquiriu em Tóquio para abrir um cinema, enquanto a mãe não se cansa de repetir um já gasto mantra – “a minha família é de uma linhagem com direito a sobrenome e porte de espada. O brasão de família também é derivado do brasão do antigo senhor feudal“.
Para além da paixão pelo sobrenatural, Mizuki traz para casa ossos e outros objectos que lhe possam servir de referência ao desenho, para desespero da mãe e encanto do pai: “Se só pensarmos em coisas do dia-a-dia, a vida é muito aborrecida“.
Nonnonba é uma enciclopédia andante de yokais e outros seres. Quando lhe perguntam, por exemplo, por que razão lava uma tina de água de forma tão extremosa, a sua resposta é esta: “Porque se trata de um Akaname, um monstro vermelho que parece uma criança com uma língua grande que lambe a sujidade durante a noite“.
Nestas cercas de 400 páginas acompanhamos a infância de Mizuki e a sua entrada na idade adulta, fruto de paixões sem hipótese de levantarem vôo, uma vida familiar sempre em mudança e a constante presença da morte. Como se lê a certa altura, o coração cresce de modo a poder alojar parte das almas que partem e que nos são próximas, sendo desta forma que se torna adulto.
Há casas assombradas, clivagens sociais, tráfico de crianças e um olhar sobre um país com um muito particular sentido de honra, tudo desenhado com mestria – Mizuki tinha 70 anos quando criou Nonnonba – e um olhar que regressa deslumbrado à infância, para a gravar em banda desenhada.
Para o final está reservada uma lista de Yokais e um texto incrível assinado por Jason Thompson, intitulado “Os Deuses e Monstros”, que nos mostra um homem que escapou por várias unhas negras à morte, que contraiu malária e que teve o braço esquerdo arrancado. E que no meio de tanta desgraça aparente teve tempo para nos deixar várias obras-primas, incluindo esta “Nonnomba” que, em 2007, venceu o Prémio do Festival de Banda Desenhada de Angoulème para Melhor Álbum. O melhor livro de 2017 com edição nacional no que toca à banda desenhada.
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