Quando Svetlana Alexievich levou para casa o Nobel da Literatura, muito se discutiu então sobre as fronteiras entre a ficção e a não ficção, ou se a escrita jornalística perfumada seria suficiente para ser considerada grande literatura – ou, pelo menos, literatura capaz de ser contemplada com o mais importante prémio literário.
Em “HHhH” (Sextante Editora, 2011), livro de Laurent Binet que conquistou o Prémio Gouncourt para primeiro romance, o escritor francês opera uma reinvenção sobre a linguagem e, sobretudo, sobre o romance histórico, género que considera ter atingido um patamar situado abaixo da cave:
“Leio também muitos romances históricos para ver como os outros lidam com os constrangimentos do género. Alguns sabem dar prova de um rigor extremo, outros pouco se ralam com isso, e outros ainda conseguem contornar habilmente as barreiras da verdade histórica sem contudo inventarem demasiado. Mesmo assim fico espantado por, em todos os casos, a ficção se sobrepor à história. É lógico, mas tenho dificuldade em aceitar isso.”
Mais à frente, sobre a reconstituição de diálogos a partir de testemunhos “mais ou menos em primeira mão, a pretexto de insuflar alguma vida às páginas mortas do passado“, Binet considera que o resultado é demasiado esforçado, fazendo com que, na maior parte das vezes, seja a voz do escritor e não a das personagens históricas a que se faz ouvir. A solução em “HHhH”, no que toca a diálogos, é esclarecida logo nas primeiras páginas do romance: “Seja como for, os meus diálogos, já que não podem basear-se em fontes precisas, fiáveis e exactas, serão inventados“.
Estamos na cidade de Praga, ano de 1942, quando dois pára-quedistas checoslovacos são enviados de Londres pelo Governo checoslovaco no exílio para assassinar Reinhard Heydrich, o chefe dos Serviços Secretos nazis e da Gestapo, inventor da “solução final”, “carrasco de Praga” , considerado o cérebro de Himmler – os nazis brincavam com o acrónimo HHhH, qualquer coisa como o cérebro de Himmler chama-se Heydrich – e o homem mais perigoso do Terceiro Reich.
A intenção de Binet é a de homenagear estes dois improváveis e desconhecidos heróis, ainda que reconheça que a sua transformação literária será sempre um ardil: “Estou a reduzir este homem – Gabčik – à categoria de vulgar personagem, e os seus actos a literatura. Alquimia infame, mas que posso eu fazer? Não quero arrastar esta visão pela vida fora sem, pelo menos, ter tentado restituí-la. Só espero que, por trás da espessa camada reflectora de idealização que vou aplicar a esta história fabulosa, o espelho sem estanho da realidade histórica se deixe ainda penetrar“.
Binet vai alimentando em lume brando esta novela que tem tanto de biografia como de thriller, um exercício literário onde, para lá de recriar a vida de dois improváveis heróis, traça igualmente um perfil sobre um dos mais pérfidos seres humanos que atravessaram a História, um acontecimento que o acompanhou durante largos anos e o convidou à escrita: “É engraçado constatar como, quando nos interessamos por uma coisa, tudo parece conduzir-nos a ela“. Ficção ou não ficção, romance histórico ou biografia perfumada, “HHhH” é um dos livros maiores sobre um dos episódios que marcaram a História, e que acabou por definir o curso da II Guerra Mundial. Brilhante.
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