Depois de uma travessia de uma década – e mais alguns pozinhos – com os Deolinda, Ana Bacalhau estreia-se agora “Em Nome Próprio”, num disco onde assume o cancioneiro português mas pisca também e sem vergonha o olho à pop anglo-saxónica. Segue-se uma conversa sobre introspecção, maternidade e… Dostoiévski.
Era de esperar que mais cedo ou mais tarde te emancipasses a esse gigante chamado Deolinda, mas poucos acreditariam que a primeira vez fosse logo com um disco conceptual sobre a (tua) identidade. Como nasceu esta introspecção musical?
Nasceu da minha inquietação, sempre. Depois de muitos anos com os Deolinda a cantar “o outro”, olhei para mim e questionei-me quem era estando a solo. Foi essa a busca a que me lancei. Tinha já uma ideia sobre como poderia juntar os meus universos musicais, obviamente o de raiz portuguesa, mas também o cancioneiro anglo-saxónico, de que sou fervorosa fã. Tinha feito alguns concertos a solo em 2013, a que chamei “15”, onde fiz versões de temas que me haviam acompanhado, cantando coisas tão diferentes como Pearl Jam ou Amália Rodrigues. A partir daí comecei a pensar em como poderia casar estes dois mundos, até que chegámos ao quarto disco dos Deolinda e sentimos que tínhamos um portal de tempo para cada pudesse seguir os seus projectos individuais – foi assim que nasceu este disco, que sou eu a tentar chegar até mim, à pessoa e artista que sou quando a solo. Daí essa introspecção que se sente, a Ana a olhar para dentro. Está lá a Ana que conhecem dos Deolinda, mas também outras facetas minhas que se encontravam um pouco mais escondidas.
Para “Nome Próprio” reuniste quase um best off de compositores e letristas nacionais, como Capicua, Nuno Prata, António Zambujo, Janeiro, Jorge Cruz, Márcia, Samuel Úria ou Francisca Cortesão. Foi-lhes dada carta branca ou houve tempo para alguns preliminares?
O meu objectivo primeiro tinha a ver com aquilo que não poderia acontecer: o som que eu criasse não poderia ser confundido com o som dos Deolinda. Apenas os orientei para que não escrevessem para mim a partir da Ana que conheciam dos Deolinda, mas da Ana que conheciam fora dos palcos. A maior parte deles conhece-me, somos amigos, tirando o Afonso Cruz – daí ter sido também importante ter uma visão de alguém que de fora. Em termos musicais, a proposta seria algo que pudesse estar entre o universo do Fausto, trabalhando os ritmos e danças portuguesas, com o universo do Variações, trazendo um cheirinho da pop anglo-saxónica. Foram estas as balizas, apenas com a Capicua foi um pouco diferente, mais profundo. Tinha aquela ideia de fazer algo por cima de um corridinho, e a Capicua sugeriu fazermos uma canção sobre a minha vida. Estivemos duas horas ao telefone e foi dessa conversa que surgiu a letra.
Foi estranho veres-te retratada no olhar dos outros?
Nada, foi tão fixe. Sinto-me muitíssimo bem retratada, leram-me bem. Isso é óptimo, quer dizer que sou assim para o transparente (risos).
Mata-nos a curiosidade: como encaixa Afonso Cruz no meio disto tudo?
Em primeiro lugar porque adoro a escrita do Afonso. Depois porque gosto muito dos The Soaked Lamb. Tinha muita curiosidade em saber como, não me conhecendo pessoalmente, faria uma leitura de mim. Acabou por ir buscar aquela Ana que se sente sempre um bocadinho deslocada, perdida no meio dos quadrados, um polígono que nunca está bem no sítio onde está – esse inconformismo. Fiquei super feliz quando ele me enviou a música, e sobretudo por ter aceitado o convite.
“Deixo-me ir” é o único tema do disco escrito e composto por ti. É algo que prevês explorar num futuro próximo ou gostas também de ir vestindo as roupas desenhadas por outros estilistas?
Sou uma intérprete, em primeiro lugar vejo-me assim. Adoro cantar as palavras e as notas musicais dos outros, dar-lhes vida. Não me vejo como autora mas, às vezes, tenho algumas coisas para dizer, ideias que surgem e que ponho no papel. Não me passa pela cabeça fazer um disco só com músicas minhas.
Se tivesses de escolher alguns discos que marcaram o teu crescimento, quais seriam eles?
O álbum branco dos Beatles, o “Pearl” da Janis Joplin, o “Busto” da Amália Rodrigues, qualquer um do Zeca Afonso, o “Por Este Rio Acima” do Fausto e o “At The Gate Of The Horn”, da Odetta. E Bob Dylan, qualquer um, fiquei maluca com a perspectiva de ele vir cá.
Vais acompanhando a música que se vai fazendo nos dias de hoje? Neste tempo propício a filhoses e listas, consegues desenhar o teu top 3 dos discos de 2017?
Sim, vou, para estar actualizada e não me tornar numa cota absolutamente quadradona. Vou acompanhando o que se faz na pop, o que passa na rádio, e parto também em busca de algumas coisas dentro dos meus gostos específicos.
Conseguirias, neste tempo tão propício a filhoses e a listas, desenhar o teu top 3?
Gostei muito do disco “Camané canta Marceneiro”, do António Zambujo a cantar Chico Buarque – “Até Pensei Que Fosse Minha” – e do “Carminho canta Tom Jobim”.
Sendo o Deus Me Livro um site dedicado à Literatura, e tendo em conta a tua licenciatura em Línguas e Literatura Moderna, que escritores escolherias para cabeças de cartaz para um festival à maneira?
Têm de estar vivos?
Não, Podem não estar.
O maior cabeça de cartaz seria Dostoiévski, para mim o maior dos maiores. Arno Schmidt, um escritor alemão pouco conhecido em Portugal mas super inovador na forma como utilizava a linguagem e a construção, uma verdadeira maravilha (Nota: A Abysmo acaba de publicar os dois primeiros títulos do autor – “Leviatã”, de 1949, e “Espelhos Negros”, de 1951”). Também Albert Camus, a Sophia de Mello Breyner e, claro, Camões e Pessoa.
Os teus textos na Notícias Magazine têm tanto de pessoal como de político. São uma espécie de diário das tuas inquietações?
Um bocadinho assim. Foi também dessa forma que comecei a escrever, quando era miúda a escrita foi a minha primeira forma de expressão, muito antes da música. Nunca fui de escrever diários, era mais uma observação no dia-a-dia, de filosofar e pensar sobre questões que eram importantes para mim e na vida dos outros. Continuo a fazer isso nas crónicas que escrevo agora. Quando me dá para escrever é para aí que vou.
A leitura é para ti um hábito regular? Que livros leste ultimamente ou quais aqueles que estão na mesa-de-cabeceira à espera de serem folheados?
Era, até ser mãe há sete meses atrás. A partir daí não consegui ler grande coisa. O último que li foi “O Jogador” do Dostoiévski, lá está. Neste processo de ser mãe deixei a meio “As Perturbações do Pupilo Törless”, do Robert Musil, ainda não voltei a pegar nele. Melhores tempos virão para a leitura.
Quem seria o teu Eddie Vedder das letras?
O Dostoiévski (risos).
E uma 4 Non Blond?
Talvez a Sylvia Plath (risos).
O que te tem trazido a maternidade?
Para já, falhas de memória, como pudeste constatar (risos). Em tantos anos de carreira nunca me esqueci de tantas letras em palco como agora. Brincadeiras à parte, deu-me uma maior confiança em mim mesma, mais força – porque tenho de ser forte para cuidar de alguém que depende inteiramente de mim – e mais confiança na minha feminilidade, no ser mulher, no ser Humano. Fez-me olhar para a minha tabela de valores e pensar no que lhe quero e no que não lhe quero passar. Uma pessoa reequaciona a sua vida toda, e coisas que eram muito importantes e um drama tremendo deixam de o ser. Tudo ganhou uma nova perspectiva, e o mais importante agora é mesmo o mais importante.
Como foi trabalhar como Arquivista no Ministério das Finanças? Cantarolavas pelos corredores? Aprendeste alguns truques para pagar menos impostos?
Cantarolava na casa de banho. Nada de truques, só trabalhava com impostos extintos, de há 30 ou 40 anos atrás. Mexia naqueles livros bolorentos e fazia o controlo de qualidade na passagem para o microfilme e o digital. Deu para ter uma vida estável até conseguir viver da música.
Tens concertos marcados para o Tivoli e a Casa da Música, mas “Em Nome Próprio” vai passar também por muitas outras cidades nacionais. Quem levas contigo nesta tour e o que espera quem aparecer?
Levo a banda que me acompanha, informalmente chamada de “Os Pataniscas”. São eles o Alexandre Frazão, na bateria, o Luís Figueiredo nas teclas, o José Pedro Leitão no baixo e no contrabaixo e o Luís Peixoto, que toca uma data de instrumentos, alguns com nomes esquisitos. A minha filha irá também a alguns. As pessoas podem esperar aquela Ana que conhecem dos concertos dos Deolinda, cheia de energia, mas para além dessa Ana enérgica há uma outra mais sossegada, que canta de olhos fechados. E um palco preparado com cenários que mostram as minhas diferentes facetas, com vídeos feitos para a ocasião. O alinhamento será o do disco e terá também alguns temas que foram importantes para a minha formação e serviram de inspiração para este disco, como Fausto, António Variações ou Trovante.
Crédito das fotografias: Frederico Martins.
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Tour Em Nome Próprio (o que falta)
2017
9 Dezembro | Ponte de Lima, Teatro Diogo Bernardes
2018
26 Janeiro | Lisboa, Teatri Tivoli BBVA
31 Janeiro | Porto, Casa da Música
8 Fevereiro | Leiria, Teatro José Lúcio da Silva
14 Fevereiro | Póvoa de Varzim, Casino da Póvoa
24 Março | Estarreja, Cineteatro de Estarreja
8 Abril | Figueira da Foz, CAE Figueira
21 Abril | Portalegre, CAE Portalegre
18 Maio | Vila Real, Teatro de Vila Real
26 Maio | Guarda, Teatro Municipal da Guarda
22 Junho | Braga, Theatro Circo
13 Outubro | Abergaria-a-velha, Cineteatro Alba
2019
19 Janeiro | Lousada, Auditório Municipal de Lousadada
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