E eis que, depois do matrimónio contraído, das drogas legais e ilegais terem sido arrumadas no fundo das gavetas ou deitadas sanita abaixo e da mudança de cenário das esquadras e ruas para o ensino em salas de aula, Harry Hole regressa numa forma respeitável em “A Sede” (Dom Quixote, 2017), o décimo primeiro livro da série assinada pelo norueguês Joe Nesbo.
Estamos em Oslo, cidade vista pelos olhos de Harry Hole como soturna, reservada e eficiente. São os tempos do Tinder e dos encontros marcados pela Internet, propícios às one night stand, às relações descartáveis e ao aparecimento de figuras pouco atinadas da cabeça, como a de um assassino que parece usar a aplicação para matar mulheres, no espírito de vampiro, usando uma antiga e ferrugenta dentadura de ferro.
Katrine Bratt é a nova Inspectora-Chefe, pressionada até ao tutano pelo big boss Mikael Bellman para resolver o caso em três tempos. Bellman que, por entre casos extra-conjugais, lacaios bem-mandados e um jogo de cintura político tremendo, está a um passo de ser convidado para assumir a pasta de Ministro da Justiça, não se importando por isso de chantagear Hole obrigando-o a, uma vez mais, regressar ao papel de inspector, descendo à Sala da Caldeira com a sua própria equipa: Bjorn Holm, amigo de longa data e inspector forense fora de série; Hallstein Smith, um psicólogo caído em desgraça que acredita tratar-se de um caso de vampirismo; e Anders Wyller, o novo membro da Brigada Anti-Crime que encarna o espírito de Hole – apesar de uma forte alergia ao látex.
Para Hole, que acredita na fatalidade das primeiras impressões, há algo de estranhamente familiar nos crimes, “um eco de um sonho esquecido. Um grito na floresta. A voz de um homem que ele tentava não recordar. Aquele que escapara“. Com Oleg cada vez mais afastado, Rakel em coma e o regresso ao álcool cada vez mais perto, Hole irá enfrentar o seu maior pesadelo, que é revelado logo na página 80 do livro.
Com Joe Nesbo e depois de uma dezena de livros, o leitor sabe aquilo que irá encontrar: um inspector carregado de demónios, polícias corruptos, jornalistas sem escrúpulos, uma trama que, como uma montanha-russa, vai sendo alimentada por descidas e subidas antes de, mesmo no final, sofrer um twist que assenta na proverbial afirmação de se ver retirado o tapete debaixo dos pés sem qualquer meiguice. Mesmo assim, Joe Nesbo faz tudo isto acontecer com uma mestria tremenda, levando a que o leitor se deixe enganar como se fosse a primeira vez. Depois da derrapagem que foi “Polícia”, “A Sede” mostra que Harry Hole tem ainda muitos demónios por aplacar. No final, a porta fica escancarada para mais um regresso. “Vem cá para fora brincar“, Harry Hole, apetece dizer.
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