É um dos mais celebrados romances de espionagem de sempre. “O Espião que Veio do Frio”, publicado em 1963, deu ao escritor John le Carré o passaporte para a fama e fortuna. O livro tornou-se um clássico, devido ao seu retrato gelado (em mais do que um sentido) do auge da Guerra Fria.
Le Carré escreveu-o com conhecimento de causa: antes de se tornar escritor a tempo inteiro e mestre das histórias de espiões foi, ele próprio, um espião, trabalhando para os serviços secretos ingleses sob o seu nome verdadeiro, David Cromwell. As suas funções incluíam interrogatórios aos alemães que desertavam da antiga RDA, em busca de vidas melhores a ocidente do Muro de Berlim.
A passagem por esse formigueiro de espiões moldou o tom e o padrão dos seus livros – 23 até este ano -, que não são propriamente thrillers mas romances políticos e cerebrais. Não há tiroteios à vista, perseguições automóveis ou voluptuosas femmes fatales. O mundo que os espiões de le Carré habitam é anti-Bond, realista, negro e moralmente ambíguo: nada de Martinis ou Aston-Martins reluzentes.
Chegado à provecta idade de 85 anos, le Carré lança agora o vigésimo quarto livro, “Um Legado de Espiões” (Dom Quixote, 2017), uma espécie de sequela de “O Espião que Veio do Frio”, que conta a história do ponto de vista do veterano Peter Guillam. O antigo agente, agora um ancião, vive na sua pacata quinta na Bretanha, quando recebe uma carta da Agência a convocá-lo para ir a Londres, onde o espera um sarilho antigo.
A operação “Bambúrrio”, detalhada em “O Espião que Veio do Frio”, custou a vida a duas pessoas, e os fantasmas regressaram para assombrar Peter. Os filhos de Alec Leamas e de Elizabeth Gold decidiram processar a agência britânica, exigindo indemnizações pela morte dos pais.
Enquanto Guillam vasculha a memória, perscrutando papeladas e relatórios antigos, procura também defender-se de advogados e agentes que questionam o seu (duvidoso) papel na operação. Assim se vão revelando as traições e os enganos varridos para debaixo do tapete há cinquenta anos.
“Um Legado de Espiões” desenrola-se em dois planos: por um lado reconstrói a operação falhada do malogrado Alec Leamas; por outro mostra Guillam a tentar evitar as consequências das suas acções enquanto agente. Como resultado, o livro saltita habilmente entre passado e presente para construir um engenhoso enredo.
A elegância da escrita de le Carré é inegável: ninguém domina as regras deste universo como ele. Apesar de haver alguma vantagem em revisitar “O Espião que Veio do Frio” antes de entrar neste novo tomo, as personagens que aqui surgem são excelentes por direito próprio, desde o enigmático George Smiley, o anti-herói no centro de muitos dos romances de le Carré – aqui um espectro que assombra a história desde o início -, até ao torturado Christoph e a toda uma galeria de sólidas criações. Não se sabe se o autor voltará a visitar este universo depois de “Um Legado de Espiões” mas, se este for o último capítulo da história, diga-se que encerra com chave de ouro.
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