No seu mais recente livro, “M Train”, a mítica cantora Patti Smith diz-nos a dada altura: “Não sou do género observador. Os meus olhos parecem girar virados para dentro”. Parece ser este, também, o caso de Débora Umbelino, a multi-instrumentista de Leiria que conhecemos como Surma – a sua música introspectiva e atmosférica tem vindo a conquistar uma aura de culto no cenário da música alternativa em Portugal (e não só).
O primeiro passo desta viagem deu-se no final de 2014, com a criação do projecto solitário Surma, integrado na cada vez mais vibrante “cena” leiriense, que inclui também bandas como os First Breath After Coma e os Nice Weather for Ducks, representados pela editora Omnichord Records, que se tornou uma referência na música portuguesa.
Passados dois anos e meio, Surma conta já no currículo com cerca de 150 concertos, espalhados por sete países diferentes, e as solicitações não param de chegar – é a primeira portuguesa confirmada no Festival South by Southwest 2018, a lendária “feira” musical que se realiza todos os anos em Austin, no Texas americano.
O inspirado primeiro single “Maasai”, lançado em 2016, foi a faísca que colocou o seu nome a reluzir em muitos radares musicais, nacionais e internacionais. Chega agora a prova de fogo: o primeiro álbum, “Antwerpen”, lançado no passado mês de Outubro e co-produzido pela “Casota Collective”, que integra três elementos dos First Breath After Coma.
Ainda que Surma seja originária da pequena aldeia de Vale do Horto, a 10 Km de Leiria, a sua música remete de imediato para a frieza das paisagens islandesas, simultaneamente electrizantes e calmantes, onde se defrontam a lava vulcânica e o gelo cortante.
A artista é uma assumida “one-woman-band” – é vê-la ao vivo entre loops em repetição, sentindo-se em casa por detrás de uma muralha de sintetizadores, a tropeçar em fios eléctricos e pedais de distorção, enquanto toca num baixo demasiado grande para a sua figura franzina, com prazer e concentração evidentes.
Quanto a “Antwerpen”, a primeira amostra que veio a lume em 2017 foi o single “Hemma”, que acentua a presença de uma personalidade artística vincada. Percussões tribais enquadram a voz distorcida, usada como se fosse apenas mais um instrumento, encaixada sobre camadas de sintetizadores planantes.
A sonoridade do álbum é intensamente visual: “Saag”, por exemplo, não destoava como banda sonora de Blade Runner 2049 – uma paisagem futurista que invoca imagens de naves prateadas a atravessar nuvens brancas, num imenso céu. É um tema melancólico, mas de certa forma optimista e luminoso.
“Kismet” é mais um exemplo do talento de Surma: uma composição invulgar, habitada por uma voz de rádio fantasma dos anos 50, que dá lugar a soluções pouco usuais, ideias que fogem ao lugar-comum, para desembocarem em harmonias vocais agradáveis e apaziguantes.
Ao longo do álbum várias referências saltam à memória: o nome de Bjork é inescapável, não tanto na voz mas nos ambientes gélidos (e na harpa cristalina de “Plass”). A espaços parece fazer sentido invocar os Cocteau Twins e a voz de Elizabeth Fraser (como em “Miratge”), noutros pontos pensa-se em nomes mais obscuros como Angel Deradoorian (influência confessa de Surma) ou Mogwai, noutros ainda surgem influências de World Music (veja-se “Voyager”, que contém um sample de Ladysmith Black Mombassa).
Depois há a faceta mais dançável, como em “Nyika”, que parte de um início quase sussurrado para lançar, pouco depois, um ritmo subterrâneo e infeccioso, a lembrar alguns temas de Jamie XX. O disco encerra com “Uppruni”, uma melodia solene e espiritual, canção de embalar incompreensível cantada numa língua inventada – diz a artista, a brincar, que é o “surmês”.
“Antwerpen” é de facto um caso raro na música portuguesa: um disco muito curioso, experimental e exótico e, acima de tudo, fascinante, que deixa antever um futuro radioso para a jovem Surma.
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