Em Junho de 2015, Luaty Beirão e outros 16 activistas foram detidos em Luanda por estarem a ler uma adaptação do livro “Da Ditadura à Democracia”, de Gene Sharp, e por questionarem publicamente a liderança de José Eduardo dos Santos. Na prisão de Calomboloca, Luaty iniciou uma greve de fome que durou 36 dias e que mostrou, um pouco por todo o mundo, o regime ditatorial, vingativo e castrador enraizado há décadas em Angola.
José Eduardo Agualusa apropria-se deste acontecimento e faz da literatura uma arma de arremesso contra o regime angolano. Em “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Quetzal, 2017), a poesia e a capacidade de sonhar são os instrumentos que convidam à transformação da sociedade, num livro que reabilita a tradição, mantém a esperança e soa como um desafio de peito cheio a um Estado moralmente – e outros “entes” – decadente, para além de apontar o dedo a Portugal por um silêncio envergonhado que se vai escondendo por detrás de interesses económicos.
O livro vive de quatro personagens, cada uma delas com uma forte ligação ao mundo dos sonhos: o jornalista angolano Daniel Benchimol, divorciado da filha de um homem que “enriquecera misteriosamente nos últimos dias do partido único e da economia centralizada“, que sonha com pessoas que não conhece. Um homem que não poderia ter sido mais claro em relação ao trabalho de Daniel: “Roupa suja a gente lava em casa. Não gosto que andes a falar mal do país num jornal estrangeiro”; Moira Fernandes é uma artista plástica radicada em Cape Town, que encena e fotografa os próprios sonhos, filmados pelo neurocientista brasileiro Hélio de Castro; quanto a Hossi Kaley, é a personagem das personagens, um antigo guerrilheiro que gere um hotel num lugar tranquilo, uma fachada para um passado obscuro e violento, alguém de quem se diz conseguir infiltrar-se em sonhos alheios.
A trama arranca quando, numa das suas sessões diárias de mergulho, Daniel encontra uma máquina fotográfica à tona de água, com fotografias que vão de pássaros sonâmbulos a uma mulher nua. Através de uma aplicação, Daniel descobre que a máquina pertence a Moira Fernandes, a mulher que o visita em sonhos – surgindo aí como a Mulher-dos-cabelos-de-algodão-doce – e que, partida do destino, trabalha também com sonhos. Decide então viajar ao encontro de Moira, para lhe devolver a máquina e tentar perceber por que razão sonha com pessoas que nunca conheceu – por vezes com as suas vidas inteiras desde que nascem até à sua morte.
Pelo caminho, um grupo de jovens – a filha de Daniel é um deles – tenta fazer cair o regime pela fome, despertando um país que dorme acordado e que aparentemente deixou de sonhar. Entre a sátira e o divertimento, o mito e a tradição, faz-se uso da poesia para incitar à transformação de um país. Um dos livros maiores de Agualusa.
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