Prémio Pulitzer de Ficção. National Book Award. Indies Choice Book Award. Andrew Carnegie Medal of Excellence. Foram estes os prémios que Colson Whitehead, nascido e criado na cidade de Nova Iorque, professor em instituições como a Universidade de Columbia e Princeton e distinguido com as bolsas Goggenheim e MacArthur, levou para casa com “A Estrada Subterrânea” (Alfaguara, 2017), um romance poderoso que se debruça sobre o passado muito particular da América, reconstruindo os tempos da escravatura entre a dura realidade e domínio do sonho.
Cora é uma jovem escrava numa plantação de algodão, pertencente a dois irmãos que a dividem ao meio de acordo com os caprichos e vontades de cada um. Mabel, a mãe de Cora, foi a única de cinco filhos que conseguiu passar os dez anos de idade, e também a única pessoa que conseguir fugir da plantação para não mais voltar, deixando a pequena filha entregue à incerteza.
“Quando Mabel desapareceu, Cora ficou perdida. Tinha então dez ou onze anos – não havia ninguém que pudesse confirmar.”
Ajarry, a avó de Cora, tomava conta com unhas e dentes de uma parcela na plantação que mal chegava aos três metros quadrados de terreno, onde cultivava alguns alimentos, mas que para si representava o mundo inteiro que se desenrolava lá fora, incógnito, inexplorável.
Depois do desaparecimento da mãe, Ava, uma mulher “rija e forte“, com as mãos esguias “como uma cobra d’água” e que “mimava mais as galinhas do que os filhos“, cobiça a terra de Cora para ampliar a sua capoeira. De repente, Cora vê-se atirada para o Hob, uma espécie de limbo para onde vão viver os aleijados, conhecido como a “casa dos miseráveis”, onde vai descobrir que a ordem do mundo acontece em qualquer parte.
“Havia uma ordem na miséria, a miséria encoberta nas misérias, e estávamos destinados a manter esta sina.”
A vida de Cora parece estar destinada a ser gasta na impiedosa máquina do algodão, até que um jovem escravo acabado de chegar do Estado vizinho da Virgínia, lhe fala da Estrada Subterrânea, um lugar situado nas profundezas da terra que lhes permitirá viajar até ao Norte, procurando um lugar onde possam ser livres. À sua espera encontra-se uma Odisseia onde a esperança e a desilusão competem com as mesmas armas, e onde o caminho da fuga, escondido do mundo, compete com o caminho da liberdade, uma estrada interminável ladeada pelos corpos dos escravos mortos.
Outra das personagens fortes de “A Estrada Subterrânea” é Arnold Ridgeway, filho de pai ferreiro, para quem “o fogo líquido era o verdadeiro sangue da terra” e que, aos 14 anos, se juntou aos homens das patrulhas, que “noutro país teriam sido considerados criminosos, mas isto era a América“. É precisamente Ridgeway, que se tornará no bicho papão dos escravos e no homem de confiança para os seus donos, que descreve de forma implacável o imperativo americano:
“Se os pretos merecessem ser livres, não viveriam acorrentados. Se os vermelhos devessem ser donos das suas terras, estas ainda lhes pertenceriam. Se o branco não estivesse destinado a dominar este novo mundo, então não seria seu agora. Aqui estava o Grande Espírito, o fio divino que liga todo o esforço humano: se o conseguimos manter, então pertence-nos. É propriedade nossa, seja um escravo ou um continente. O imperativo americano.”
Das muitas personagens que habitam este romance há também Aloysus Stevos, estudante de medicina e ladrão de cadáveres, que diz que “na morte, o negro torna-se um ser humano. Só nessa altura passava a ser igual ao homem branco“.
Colson Whitehead recria, entre a ficção e a fantasia, um dos períodos mais infames da história americana, numa escrita engenhosa que vai atravessando um cenário de crueldade, vingança e violência para caminhar na direcção de uma luz ténue, que vai piscando no inacessível norte. E a verdade é que, mesmo tendo em conta que a América elegeu surpreendentemente um presidente negro, não deixa também de ser verdade que logo a seguir elegeu o seu negativo, que olha para a América como o centro do universo, alimentando diariamente a ilusão de um país e a diferença entre quem nela vive. Precisaremos de uma nova estrada subterrânea?
“E a América também é uma ilusão, a maior de todas. A raça branca acredita, e acredita do fundo do coração, que tem o direito de ficar com a terra, de matar os Índios, de fazer guerra e de escravizar os seus irmãos. Se há alguma justiça no mundo, esta nação nem devia existir porque assenta em assassínios, roubos e crueldade. No entanto, cá estamos.“
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