Depois de “Shylock é o meu nome”, livro onde Howard Jacobson se entreteve a falar do anti-semitismo moderno a partir de “O Mercador de Veneza”, chega agora a vez de Anne Tyler revisitar o Shakespeariano “A Fera Amansada”, livro que, na colecção Bertrand Shakespeare, chega às livrarias com o título “Amarga Como Vinagre” (Bertrand Editora, 2017).
Kate Battista é uma jovem que está a um passo de se tornar numa eterna e amarga solteirona. Quase sem dar por isso e depois de ter falhado a Botânica na universidade – basicamente convidaram-na a ir embora -, tornou-se numa dona de casa para todo o serviço, cuidando do pai, um desleixado e excêntrico cientista, e de Bunny, a irmã mais nova, dotada de boas curvas e um pretensiosismo para dar e vender.
Kate trabalha num infantário, sendo chamada à atenção quase todos os dias por disparar tiros ao lado que, apesar de não parecerem criar grande mossa nos petizes, acertam em cheio nos pais, que erguem a voz como alvos em movimento. Ela que tem uma muito curiosa visão do mundo das crianças (sobretudo se tivermos em conta que trabalha num infantário): “Não era verdade que odiasse crianças. Pelo menos, havia algumas de quem gostava bastante. A questão era que não gostava de todas as crianças, como se elas fossem membros uniformes de uma sub-espécie qualquer ou coisa parecida“.
Quanto ao pai de Kate, o doutor Battista, parece estar à beira de uma importante descoberta científica, muito graças ao brilhante e jovem ajudante Pyotr. O problema é que o visto deste está a terminar, e só um casamento arranjado pode fazer com que a sua estada no país seja eternamente prolongada. E quem melhor do que Kate para o ajudar neste plano científico-amoroso?
Anne Tyler serve de bandeja um retrato primoroso de uma família para lá do disfuncional, com personagens todas elas dignas de um romance só para si: o pai, perdido num mundo onde a Ciência não deixa sequer um centímetro de espaço para o zelo familiar; Pyotr, o emigrante fofinho que acredita, mais do que no visto, na conquista do coração de pedra de Kate; Bunny, “toda ela uma nuvem de caracóis dourados e uma cara de suposta inocência“, mas que poderia ser uma das irmãs castigadores da Cinderela; Edward Mintz, o vizinho do lado, que sob a capa de explicador de espanhol pro bono vai trocando uns amaços com Bunny; e, claro, Kate, que presa entre uma família tépida, um trabalho que se fosse um par de calças lhe ficaria um bom palmo acima dos tornozelos e um casamento arranjado, encontrará forças para operar uma mudança de vida, transformando o vinagre em sumo de maçã.
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