“No último mês, a família tinha vivido submersa numa bruma gerada por coisas por dizer, marcada por olhares, sussurros, subtis alterações de atitude e contactos discretamente suspensos.”
O negrume instala-se logo nas primeiras páginas de “A Árvore das Mentiras” (Editorial Presença, 2017), livro que parece ter sido escrito à sombra e, logo de seguida, posto a descansar no frigorífico, de modo a conservar a corrente de ar frio que percorre as suas páginas.
Este é o romance que Frances Hardinge escreveu depois de “A rapariga que sabia ler” – edição portuguesa pela Editorial Presença -, e que acabou por levar para casa o Prémio Costa para Melhor Livro do Ano em 2015, distinção que lhe assenta muito bem.
A protagonista dá pelo nome de Faith, uma adolescente fascinada pelo pai que se vê, juntamente com a família, a caminho da inóspita Ilha de Vane, fugindo aos boatos de que o pai, o reverendo e cientista Erasmus Sunderly, não passa de “um mentiroso e uma fraude“.
Erasmus ficou conhecido por ter descoberto os fósseis New Falton, que muitos diziam tratar-se de um ombro fossilizado com uma asa a sair dele, e que relançava a discussão à volta da idade do mundo, isto num período em que, antes da recente publicação de “A Origem das Espécies”, de Darwin, se acreditava que o mundo não teria mais de seis mil anos.
Aparentemente, Erasmus foi convidado a ir a Vane para dar o seu contributo numa escavação, mas poucos dias depois da chegada dos Sunderly à ilha Erasmus é encontrado morto, suspeitando-se de que se terá tratado de um suicídio. Caso isso se confirme, a família irá perder o direito a qualquer reparo financeiro.
Faith, porém, tem outras suspeitas, acreditando que se tratou de um assassínio motivado pela Árvore das Mentiras, um espécime que o pai de Faith guardava em segredo e que se parece alimentar das mentiras que lhe são segredadas. Com toda a Ilha a acreditar que Erasmus se terá suicidado, caberá a Faith tentar descobrir o assassino do pai.
Francis Hardinge escreveu um livro verdadeiramente singular, numa narrativa que se vai desenrolando em vários andares. Se, por um lado, a atmosfera policial e de mistério representa a sua sustentação, o livro aborda ainda e de forma fascinante outros tópicos, tocando o campo da ficção histórica: o conflito entre a religião e a ciência mas, sobretudo, a condição da mulher, num período da história onde era praticamente equiparada a um animal de companhia, impedida de sonhar e considerada desprovida de intelecto.
“– Quanto maior é o crânio, maior é o cérebro e maior é a sua inteligência – prosseguiu o médico, que começava a entusiasmar-se com o tema. – Basta olhar para a diferença de tamanho entre o crânio da mulher e o crânio do homem: o crânio do homem é muito maior, o que faz dele a sede do intelecto. – O médico pareceu aperceber-se de que não estava a ser muito cortês. – O espírito da mulher é completamente diferente – apressou-se a acrescentar – e também é maravilhoso, à sua maneira! Mas o excesso de intelecto acabaria por dar cabo dele, como uma pedra num suflê.”
A escrita de Hardinge é muito rica, destilando ironia, sorvendo melancolia e usando e abusando do humor negro, num livro muito original que está entre as melhores edições que chegaram às livrarias nacionais em 2017. Quanto a Faith, personagem maior, descobriu o buraco da agulha por onde as mulheres puderam finalmente entrar, num mundo dominado pelos homens: “Quando todas as portas se fecham, aprende-se a trepar pelas janelas“.
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