Durante cerca de vinte anos a Coreia do Sul foi governada por Park Chung-hee, assassinado no início dos anos 80, permanecendo ainda assim o país sob o jugo de um regime ditatorial, particularmente repressivo, uma ditadura militar a camuflar uma rápida industrialização e aparente abertura económica ao ocidente.
Durante este período, apesar da repressão, ocorrem grandes movimentos de protesto, tendo aí os estudantes um papel fundamental. As manifestações estudantis foram duramente reprimidas, com milhares de pessoas presas, mesmo após a morte de Park e a assunção do poder por uma nova governação que, sendo-lhe próxima, proclamou novas leis restritivas, nomeadamente a nova lei marcial de maio de 1980. É então que milhares de estudantes na cidade de Kwangju saem à rua e são barbaramente assassinados. Segundo alguns dados, mais de cinquenta mil pessoas foram presas durante uma “campanha de purificação social” realizada a partir do verão de 1980, entre as quais perto de quarenta mil foram enviadas para campos militares para serem sujeitas a “reeducação física e psicológica“.
Em “Atos Humanos” (D. Quixote, 2017), Han Kang dá voz aos estudantes que protagonizaram estes episódios históricos, aos familiares que os viveram através da angústia e do desespero de os ver desaparecer, e dela própria, cidadã de um país que enfrentou assim, de forma bárbara, a expressão de opinião e oposição da sua juventude. Trata-se por isso de um romance considerado polifónico, com múltiplas entradas e relatos, enriquecidos pela dupla perspectiva temporal de contemporaneidade com os acontecimentos e a actualidade.
Os relatos expõem o limite do sofrimento humano, da privatização e da resistência à tortura física e psicológica, perpetuando um trauma que permanece após a libertação, permitindo a sobrevivência física mas a morte emocional. Em muitos casos sobreviver revelou-se pior que morrer, tal as marcas e o sofrimento perpetuado. Vários dos personagens partilham com o leitor a questão: o que será pior, a dor ou a memória?
Han Kang demonstra o alcance do programa de tortura levado a cabo sob os estudantes resistentes, responsável pelas muitas mortes mas por outras tantas vidas destruídas: “Há memórias que não saram. Em vez de se esbaterem com a passagem do tempo, essas recordações tornam-se a única coisa que sobra quando tudo o resto se corrói. O mundo escurece, como lâmpadas elétricas fundindo-se uma a uma. Espero que o tempo me arraste como água enlameada. Espero que a morte chegue e me limpe, me liberte da memória dessas outras mortes esquálidas que assombram os meus dias e as minhas noites.“.
Depois de dar voz também às famílias dos que morreram, expondo a forma como se envolveram em buscas inglórias por uma réstia de dignidade a dar aos seus, vendo-se impedidos de os velar, como até de os identificar – a culpa de um abandono forçado.
Por fim, a forma como a própria autora, à data com nove anos, viveu os acontecimentos relatados e os processou. Passados mais de trinta anos sobre os mesmos, Han Kang assacou a si a responsabilidade de não ficar inerte, de relatar para alertar e prevenir, dar-lhes vida para contê-los.
Para Han Kang, nascida na Coreia do Sul, por diversas vezes já premiada pelos seus textos – nomeadamente com o Man Booker International Prize em 2016 -, este é o seu segundo romance. Para os mais incautos recomenda-se precaução pois a intensidade da narrativa, aliada à crueza dos factos, é susceptível de causar forte impacto, desconforto e angústia, mais uma vez associada ao questionamento de quais serão os limites da crueldade e perversão humana.
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