“Chamem-me Ismael“. É desta forma meio tu-cá-tu-lá que tem início aquele que é considerado, por muito bom leitor, o maior romance de todos os tempos, ainda que, quando tenha morrido em 1891, Herman Melville não passasse de um desconhecido e “Moby Dick” (Guerra & Paz, 2017 – reedição) – escrito em 1851 -, assim como outros dos seus livros, tenha sido recebido de forma pouco entusiasta, tanto pela crítica como pelos leitores. O desencanto de Melville foi tanto que, depois da edição de “The Confidence-Man”, em 1857, não mais regressaria à Literatura, sendo apenas redescoberto no século seguinte.
Esta nova edição da Guerra & Paz, integrada na colecção dedicada aos clássicos, é um verdadeiro primor, começando pela bonita capa, um design esmerado e uma paginação de primeira, incluindo ainda um ensaio de D. H. Lawrence e um guia que resume todas as personagens que habitam este verdadeiro tsunami literário.
A história é-nos contada por Ismael, para quem o mar actua como “o substituto a uma pistola carregada“, “a maneira (…) de afugentar o fastio e de regular a circulação“. Ismael conta-nos a história épica do capitão Ahab, um homem sedento em encontrar uma baleia branca de nome Moby Dick, que o deixou sem uma das suas pernas numa caça à baleia.
A tragédia é algo que se pressente desde o início, ainda antes do embarque e logo após Ismael conhecer Queequeg, um canibal que nunca comia pudim, gostava de bifes em sangue e vendia cabeças humanas embalsamadas. Uma tragédia que, ainda que pressentida, parecia inevitável: “Se tivesse sido absolutamente honesto comigo mesmo, teria visto com clareza que no fundo do coração não gostava propriamente de estar a comprometer-me desta maneira numa viagem tão longa sem ter posto a vista em cima do homem que se tornaria o seu ditador absoluto assim que o navio largasse rumo à vastidão do mar. Mas quando um homem suspeita que alguma coisa não vai bem, sucede por vezes que, estando já envolvido no assunto, procure insensivelmente guardar essas suspeitas até de si mesmo. Foi em boa medida o que aconteceu comigo. Não disse nada, e tratei de não pensar em nada“.
Em “Moby Dick”, Herman Melville inventou um romance que é talvez o lugar onde a literatura esteve mais perto de tocar o infinito: uma Bíblia mais humana, onde o homem luta contra o homem, desafia imprudentemente a natureza e, no fim, nada mais lhe resta a não ser aceitar a inevitável derrota. Um livro sobre a existência e a morte que, pelo meio, ainda oferece um estudo intensivo sobre as baleias e um tratado sobre a religião.
Num brilhante ensaio intitulado “O Todo e o Se: Deus e Metáfora em Melville” (In “A Herança Perdida”, Quetzal), James Wood analisa de forma brilhante este grande romance, que considera “o sonho de liberdade para qualquer escritor“. Quanto a Melville, criado no calvinismo da Igreja Reformada Holandesa, vê-o como alguém que “não consegue acreditar, nem consegue conforto na sua descrença, e é demasiado honesto e corajoso para não tentar uma ou outra“. Olhando para este como o livro onde a metáfora se tornou a verdadeira essência da ficção, Woods questiona-se sobre o que simbolizará, afinal, esta baleia branca? A morte? Deus? Ou o absoluto e inescrutável vazio?
Qualquer que seja o ponto das vossas vidas, este é um daqueles livros obrigatórios antes de irem ao encontro com o Criador. Ou, se quiserem, quando chegar o momento de partirem à caça da vossa baleia branca.
Sem Comentários