Cecilia, Lux, Bonnie, Marie e Therese. São estes os cinco nomes das irmãs Lisbon, que “eram baixas, usavam calças de ganga que lhes arredondavam as nádegas e as suas bochechas rechonchudas lembravam essa mesma magreza dorsal. Sempre que as vislumbrávamos, as suas caras pareciam indecentemente descobertas, como se estivéssemos acostumados apenas a ver mulheres de véu“.
As palavras pertencem a um dos rapazes que se deixou encantar por estas cinco irmãs, belas e excêntricas, a princípio indistinguíveis entre si e sempre obsessivamente vigiadas, proferidas vinte anos depois de, num espaço de um ano, se terem suicidado. Uma espécie de revisitação a um passado que, apesar de distar já duas décadas, continua presente na vida de um grupo de rapazes que ficou refém do fascínio provocado por este estranho quinteto.
Adaptado de forma algo embelezada ao cinema por Sophia Copolla, “As Virgens Suicidas” (D. Quixote, 2017 – reedição), escrito pelo americano Jeffrey Eugenides, é um dos grandes romances sobre as emoções da juventude, a irrequietude da adolescência e a perda irrecuperável da inocência, numa família de pais desequilibrados, castradores e pouco cuidadores que olhavam para as filhas como bonecas que deveriam permanecer dentro de caixas de plástico, para não serem contaminadas pelo ar do mundo, deixando que a decadência interior fosse reflectida em toda a casa, desde o frigorífico vazio, o mobiliário ultrapassado ou as muitas falhas que faziam com que o chão da casa tivesse, a certa altura, já alguns centímetros de água.
Para lá de um exemplar retrato da adolescência, Eugenides mostra também, ainda que sem os apontamentos morais de, por exemplo, em “Beleza Americana”, a forma de funcionamento de uma comunidade, onde estão presentes os silêncios incómodos, as falsas aparências ou a inoperância perante o perigo iminente. Ou, claro, o comentar e o teorizar da desgraça alheia, como as várias razões apontadas quando se dá o primeiro dos suicídios, que vão de a casa ter uma decoração pavorosa ao afastamento de Deus, passando ainda por um amor não correspondido.
A prosa de Eugenides é a de um contador de histórias ao nível de Sherazade, com descrições tão incríveis quanto esta, juntando a atenção ao detalhe com o humor negro e a causticidade – e que ajuda a perceber que as irmãs, apesar de parecerem gémeas, tinham em si algo de único e característico: “Em vez de cinco réplicas com o mesmo cabelo loiro e a mesma cara bochechuda, compreendemos que eram seres distintos, com personalidades que começavam a transformar as suas caras e a redireccionar as suas expressões. Apercebemo-nos logo de que Bonnie, que se apresentava agora como Bonaventure, tinha a pele macilenta e o nariz afiado de uma freira. Os seus olhos lacrimejavam era trinta centímetros mais alta do que as irmãs, em grande parte devido ao comprimento do pescoço que, um dia, viria a pender de uma corda. Therese Lisbon tinha um rosto mais pesado, com bochechas e olhos de vaca e aproximou-se toscamente para nos cumprimentar. O cabelo de Mary Lisbon era mais escuro; tinha a testa em forma de coração e a penugem que tinha sobre o lábio superior indiciava que a mãe havia descoberto a cera depilatória. Lux Lisbon era a única que se enquadrava na nossa imagem das meninas Lisbon. Irradiava saúde e travessura. O vestido estava-lhe justo e, ao chegar-se à frente para nos apertar a mão, fez-nos discretamente coceguinhas na palma com um dedo, ao mesmo tempo que dava uma gargalhada áspera. Como sempre, Cecilia usava o vestido de noiva com a bainha rasgada. Era um clássico de 1920. Tinha lantejoulas naquela zona de um peito ainda vazia e alguém, talvez a própria Cecilia, ou então o dono da loja de roupa usada, cortara, toscamente, parte de baixo do vestido que terminava agora acima dos joelhos esfolados de Cecilia. Estava sentada num banco alto, a fitar o interior do seu copo de ponche e aquele vestido disforme, qual saco, caía-lhe ao longo do corpo. Pintara os lábios com um lápis vermelho, ficando com um ar de meteriz enlouquecida, mas agia como se lá não estivesse ninguém“. Magistral.
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