“— Doutor, a ciência diz-nos que viver sem alimento é impossível.
— Sim, mas, no início, não serão todas as novas descobertas, na história da civilização, estranhas e excepcionais, quase mágicas?”
Depois do bestseller “O Quarto de Jack”, Emma Donnoghue regressa às prateleiras das livrarias portuguesas com mais um inquietante livro inspirado em relatos históricos: “O Prodígio” (Porto Editora, 2017).
Anna O’Donnell — “o milagre vivo” — é uma jovem de 11 anos que se recusa a comer há 4 meses, sobrevivendo dia após dia sem aparentes consequências físicas. Inserida numa família fervorosamente católica e numa sociedade da Irlanda do século XIX, que “engole o que quer que seja que Sua Santidade lhes impinja”, a jovem é vista como um “fenómeno extraordinário”, atraindo diariamente hordas de visitantes para ver de perto o inexplicável “prodígio da fé”.
Para confirmar que Anna é de facto de um milagre, e não fruto de uma qualquer fraude, é formado um comité que nomeia duas enfermeiras para supervisionarem a criança dia e noite, ininterruptamente, durante duas semanas. Assim surge Lib Wright, uma enfermeira inglesa formada por Florence Nightingale na Guerra da Crimeia, alguém que a vida tornou cética e a quem caberá vigiar a menina, a par de uma freira.
Decidida a desmascarar o que julga ser uma fraude, é pelos olhos de Lib que acompanhamos o desenvolvimento do estado da criança, que começa a “definhar perante a passividade de todos e a impotência” da enfermeira.
O livro está dividido em cinco capítulos, cada um representando um acto — os primeiros três “Cuidar”, Vigiar” e “Jejuar” —, que vão encaminhando o leitor para um final que se mantém em aberto. Juntamente com Lib, o leitor vai formando as suas ideias, procurando resolver o mistério que se adensa a cada página e que culmina num grande desfecho.
É inquietante ver como toda uma nação acredita na santidade de Anna — a menina que “falava da Sagrada Família como se fossem seus parentes” —, como acredita indubitavelmente na ideia de “sacrificar a carne e elevar o espírito”, quando falamos de uma Irlanda marcada pelas “garras da fome”. “Seria Anna que sofria de paranóia religiosa ou a nação inteira?”. O contexto histórico no qual Emma Donnoghue insere a narrativa é sem dúvida cativante e determinante na história, bem como a forma escolhida para o leitor acompanhar o enigma.
Emma Donnoghue tem a capacidade de deixar o leitor completamente imbuído na narrativa, curioso e simultaneamente irritado com a impavidez de algumas personagens, especialmente quando se trata da família que deveria pôr a saúde da criança em primeiro lugar. “Não era o verbo alimentar que definia uma mãe, acima de tudo e desde o primeiro dia?”. Aos poucos e pela enfermeira Lib, com quem criamos uma empatia imediata, percebemos que “a observação representava apenas a primeira peça do puzzle”, e que muito mais há a descobrir sobre este drama familiar. Estará a menina a mentir? O que terá a esconder?
O livro apresenta uma atmosfera de tensão iminente, marcada pelo fundamentalismo religioso capaz de cegar os crentes, mas também pela questão da ética profissional. Até que ponto uma enfermeira vê um paciente definhar a caminho da morte, sem nada fazer? Até que ponto um enfermeiro deixa de lado a sua missão de “cuidar” para simplesmente “vigiar”?
“O Prodígio” é uma história absorvente, que proporciona não apenas uns momentos de entretenimento como leva a pensar e a reflectir sobre o fervor religioso. O ritmo (ainda que) lento da narrativa, contrabalançado com a forte presença de diálogos e a capacidade da autora espicaçar a nossa curiosidade, leva a que este seja um livro para ler de uma só assentada.
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