É, no papel, um dos mais entusiasmantes projectos literários que estão em movimento: levar os escritores modernos a revisitar Shakespeare quatro séculos depois, recriando os textos do autor em romances originais. Iniciado pela Hogarth, uma casa editorial inglesa, a colecção – que em Portugal recebeu o nome de Bertrand Shakespeare – teve o seu primeiro lançamento nas livrarias nacionais com “Shylock é o meu nome” (Bertrand, 2017), onde o britânico Howard Jacobson partiu da peça “O Mercador de Veneza”.
Howard Jacobson é como um daqueles teóricos que, seja na fila do supermercado, quando o carteiro bate à porta ou o vizinho da frente vem à janela estender um par de toalha, aproveita para falar de futebol, seja comentando a última e desafiante táctica escolhida pelo treinador da sua equipa ou aquele golo falhado de forma impensável. A diferença é que, no caso de Jacobson, o futebol é mais judaísmo, o tema central de quase toda a escrita do autor britânico.
Estamos num cemitério onde tudo acaba, o lugar onde inesperadamente irá nascer uma amizade de dimensões épicas e filosóficas entre dois homens: Shylock e Simon Strulovitch, ambos mergulhados em situações familiares delicadas. Strulovitch teve o seu casamento arruinado à boleia das piadas judias que insistia contar, e logo na lua-de-mel em Veneza. Quanto a Shylock, vem ao cemitério travar conversa com a sua mulher morta. Em comum partilham uma fraca apetência para lidarem com as filhas e, se Shylock parece funcionar como um reflexo da consciência de Strulovitch, é também uma personagem ao nível deste, uma vez que Jacobson monta um palco suficientemente grande para ambos.
A intriga e as personagens são modernas adaptações Shakespearianas: Danton, um gay que por dever se irá tornar num amante não carnal; uma herdeira que conduz um Porsche e tem o seu próprio reality show; Gaitan – não o que jogou no Benfica -, um jogador de futebol com poucos miolos e uma tara de todo o tamanho por raparigas judias; Barnaby, o mecânico que preferiu o ar cool do carocha ao mais estiloso Porshe.
Com a arte como pano de fundo e colocando Shylock entre o papel de herói e vilão, Howard Jacobson apresenta um retrato do anti-semitismo moderno, num livro onde não faltam anedotas de judeus a masturbarem-se, se discute a utilidade da circuncisão, se fala dos filhos como “a causa de toda a insatisfação humana“, se faz humor negro cruzando Kafka com Hitler ou se inventam diálogos que poderiam ter sido escritos há quatro séculos atrás pela mão do próprio Shakespeare.
” – Achas que seria diferente se ela nunca saísse de casa? Uma filha não precisa de gozar de uma educação para aprender a odiar o pai. Basta ter a janela aberta para aprender a revoltar-se. Faz parte da natureza de uma filha.
– Faz parte da natureza de uma janela aberta.
– Faz parte da natureza da natureza.
– Então sou contra a natureza.”
“Amarga como Vinagre”, livro de Anne Tyler a partir de “A Fera Amansada”, é o segundo título da colecção, e está já disponível nas livrarias. Futuramente teremos Jeanette Winterson (a partir de O Conto de Inverno), Margaret Atwood (a partir de A Tempestade), Jo Nesbo (a partir de Macbeth), Tracy Chevalier (a partir de Otelo), Edward St. Aubyn (a partir de Rei Lear) e Gillian Flynn (a partir de Hamlet).
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