“No final de Fevereiro de 2016, saí de Lisboa com a missão de percorrer os Estados Unidos a partir da sua literatura. Elegera 16 romances de partida para 12 reportagens. Uma por mês durante um ano (…). A proposta era fixar-me nesse espaço entre ficção e realidade para falar de um país num momento de mudança. No resto, seria guiada pelo acaso.”
As palavras acima transcritas pertencem a Isabel Lucas e servem de apresentação a “Viagem ao Sonho Americano” (Companhia das Letras, 2017), um livro que está entre o jornalismo old school feito à séria e uma escrita perfumada e inspirada por quem tem, com a literatura, uma relação de amor louco há já muitos calendários.
Para o leitor, trata-se de um verdadeiro festim. Ao mesmo tempo que lhe são apresentados alguns dos mais incríveis autores e romances americanos, é-lhe igualmente servido um guia geográfico e sentimental de um país à beira de um inesperado cataclismo eleitoral, sempre com a literatura a servir de bandeira e motivo para pôr o conta-quilómetros a correr.
Logo a abrir e tendo como ponto de partida o épico “Moby Dick” de Herman Melville, o livro mais aproximado de constituir “uma bíblia americana” – ou “a história onde podiam começar todas as histórias” -, Isabel Lucas viaja até New Bedford, lugar de onde partiu o Pequod construído por Melville, para nos contar a história do lugar, referindo a emigração portuguesa, o flagelo da droga ou os marcos geográficos por onde passou Melville.
Mais à frente ficamos a conhecer Donald Ray Pollock, escritor que publicou o primeiro livro aos 54 anos, quatro anos após ter decidido ser escritor. O escritor do mal com geografia e paisagem definidas, criador de “um universo único, cru, povoado por personagens no limite do mal, marcadas por um território abandonado, rural, de sobrevivência ao extremo“.
Richard Ford, autor de “Dia da Independência”, acredita que “o sonho americano é uma fantasia europeia“, ele que, como poucos, escreveu sobre a classe média branca dos subúrbios, criando um alter-ego chamado Frank Bascombe.
Não poderia faltar o incrível senhor Cormac McCarthy, o pintor dos mais belos e violentos apocalipses; David Foster Wallace, um tortuoso visionário que anteviu o futuro tecnológico sem espaço para as emoções humanas; ou a dupla Saul Bellow e Philip Roth que, de forma muito distinta, contribuí para que a experiência judaica se soltasse de amarras para se constituir como parte da literatura americana. Mas há também David Vann, Junot Díaz, Gore Vidal, Marilynne Robinson, Louise Erdich e Edith Wharton, todos eles parte de um imenso olhar sobre a América que junta a imensidão do sonho e das possibilidades infinitas a uma desigualdade abissal de rendimentos, uma propensão para o suicídio estudantil ou uma estatística de doenças mentais impressionante. Sempre atravessado pela paisagem e pela geografia.
Para cada um dos textos, Isabel Lucas indica a obra de partida e a sua geografia, bem como as várias leituras preparatórias e um travel log que serve de diário, de desabafo e de linha temporal. Acompanhado de fotografias e de uma paginação que é toda ela design, “Viagem ao Sonho Americano” é um dos grandes livros de não-ficção deste ano, um triunfo do jornalismo e da literatura.
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