Na última edição do LeV – Literatura em Viagem, depois de ter sido chamado de “o Apolo da tradução” por Tito Couto, Frederico Lourenço falou da efemeridade das traduções, e de como estas se apresentam como pistas e marcos temporais destinados a, mais tarde, serem levadas ao nível seguinte pelos tradutores desse tempo que está para vir.
A verdade é que as suas traduções da “Odisseia” e da “Ilíada” permanecem intocáveis até hoje e, quanto ao projecto único de traduzir a Bíblia directamente do grego e em versão alargada, não é difícil prever que, durante as próximas décadas, ninguém se atreva a repetir tamanha empreitada.
Chegou em Março às livrarias “Bíblia Volume II: Novo Testamento” (Quetzal, 2017), o segundo de uma série de seis volumes, que disponibiliza pela primeira vez em Língua Portuguesa a tradução integral da Bíblia Grega. Neste segundo volume, com o sub-título Apóstolos, Epístolas e Apocalipse, fica concluída a publicação do Novo Testamento. Seguir-se-ão agora os quatro volumes finais, que reúnem os textos do Antigo Testamento.
Constantino, o primeiro imperador cristão, não era homem para brincadeiras, tendo definido um apertado cânone no que tocava à igreja, que deveria ser de pensamento uniforme, e incentivado “a supressão não só de heresias como dos textos que as veicularam“. Mesmo após a despenalização, legalização e obrigatoriedade do cristianismo, a perseguição aos cristãos continuou, com a particularidade de os perseguidores serem, também eles, cristãos.
Desta forma, textos como os Evangelhos de Tomé, Pedro, Judas ou Maria (Madalena), ou os Actos de Paulo e Tecla – ou outros Apocalipses -, não nos chegaram completos devido a actos de supressão. No ano de 1945, a descoberta fortuita de um contentor no Egipto com um conjunto de livros, pertencentes provavelmente a uma biblioteca monástica, revelou uma carta pascal escrita por Atanásio, Bispo de Alexandria, em 367, que elencava os 27 livros que os cristãos deveriam ler para “granjear a salvação” – livros que são, justamente, o Novo Testamento.
Frederico Lourenço refere uma consensualidade em relação à literatura cristã dos primeiros séculos, feita de textos “pseudoepigráficos”, escritos por autores que ocultavam a sua verdadeira identidade, um mundo de pseudónimos que terá certamente encantado Pessoa. E, se nem os Apocalipses foram escritos Pedro ou os Evangelhos de Judas foram escritos por este último, mesmo nos livros que entraram no Novo Testamento persistem dúvidas quanto à sua autoria. Porém, em relação a estes últimos, as autorias nunca levantaram quaisquer dúvidas sobre ortodoxia ou doutrina – os de Mateus e João serão o caso mais evidente.
Este segundo volume apresenta as muitas Cartas de Paulo, os textos cristãos mais antigos que chegaram até nós (anteriores mesmo aos próprios Evangelhos) e apresentam um retrato do cristianismo nascente, os Actos dos Apóstolos, obra atribuída à pena de Lucas onde se narram as primeiras etapas do novo movimento religioso inspirado na vida e testemunho de Cristo – sendo Paulo o herói de uma narrativa que continua a desafiar os estudiosos -, bem como de outros textos complementares: as restantes epístolas do cânone do Novo Testamento e o sublime livro do Apocalipse. Há-que dar graças.
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Se me é permitido, partilho aqui um artigo que escrevi sobre opções de tradução da Bíblia que não honram o texto original, enviesam o entendimento do mesmo e acabam por contribuir para alimentar tradicionalismos extrabíblicos: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/07/traducoes-e-tradicoes.html