Ano da Graça do Senhor de 2017, século XXI: o que até há bem pouco tempo era garantido pelos próprios ser completamente impossível, aconteceu bem em frente a estes olhos que a terra há-de comer um dia. Os Guns N’ Roses originais voltaram a juntar-se, apenas um par de anos depois de Axl Rose e Slash terem prometido, pela enésima vez, que isso não iria acontecer. Daí que a digressão tenha o muito irónico título de Not in tis lifetime.
Este regresso dos Guns a Portugal, 25 anos depois daquela vez que Axl amuou no estádio de Alvalade (o concerto no Rock in Rio não conta, aquilo não eram os Guns, eram só os assalariados de Axl) é, portanto, um exercício de nostalgia. Estão lá Axl, Slash e Duff (pelos vistos o baixista era a cola que faltava para unir os dois primeiros), continua o teclista Dizzy Reed e estão as canções que fizeram a nossa adolescência. Não estão Izzy Stradlin (que há muito que abandonou estas lides) e Steven Adler (que caiu no caldeirão das drogas há já muito tempo atrás), mas quem é que quer saber desses pormenores?
São quase 60 mil pessoas no Passeio Marítimo de Algés, a maioria delas de t-shirt com pistolas e rosas, algumas actuais e muitas de 1992, e muitos lenços vermelhos que foram desempoeirados do baú (o único que nunca deixou de os usar foi o Zé Pedro dos Xutos, claro). E vemos miúdos e graúdos de várias idades, incluindo pais e filhos, os primeiros que se lembram do tal concerto em Alvalade e os segundos que nem sequer eram nascidos quando Axl não pôs Slash a gravar o single “Sympathy for the Devil” para a Entrevista com o Vampiro, e era o princípio do fim dos Guns. De repente, a realidade chocou comigo de frente: aquele que em tempos foi o mais perigoso grupo do mundo é agora uma banda inter-geracional para toda a família. Os Guns N’ Roses estão-se a tornar nos novos Rolling Stones!
Praticamente à hora marcada (10 minutos de atraso não são nada para uma banda que nos habituou a chegar 2 horas(!) depois do previsto) arranca o concerto, e é como aquela cena do Pulp Fiction em que o John Travolta espeta uma injecção de adrenalina no coração da comatosa Uma Thurman. Ou seja, estamos ali mergulhados no torpor da rotina dos trinta, enfiados num emprego das 9 às 6 e entalados em dívidas e obrigações familiares mais ou menos aborrecidas, e de repente atiram-nos “It’s so easy” e “Mr. Brownstone” e a nossa vida muda, recua vinte anos, somos adolescentes outra vez, o rock volta a ser belo, jovem e perigoso, e ninguém nos pode parar.
Na passagem entre os anos 80 e os 90, os Guns N’ Roses foram um fenómeno incrível, tendo conseguido unificar toda uma geração de jovens ao cruzar o melhor do hair-rock (e o pior também – as permanentes, o shredding, as baladas épicas…) com a crueza do grunge que haveria de vir. Anos mais tarde, os Velvet Revolver haveriam de levar esse casamento mais longe (quando Axl, Slash e Matt Sorum se juntaram ao Stone Temple Pilot, Scott Weiland), mas sem um décimo da graça. Tudo começou a descambar à medida que o egocentrismo (e especialmente a megalomania) de Axl Rose cresceu. Por isso, quando passam as músicas de “Chinese Democracy” – a homónima, “Better” e “This I love” -, esse álbum que demorou séculos a ser concluído e que me fez cancro nos ouvidos quando o tentei ouvir, ninguém quis saber. Por exemplo, “This I Love” é uma xaropada de proporções épicas, com pianola farsola e coros à Michael Bolton. Não há paciência.
É certo que os Guns sempre fizeram baladas – e “Civil Wa” foi um dos momentos da noite, com aquela entrada daquele filme tão esquecido que é Cool Hand Luke, até pela actualidade da letra -, mas quem é que quer ver um concerto só com November Rains? Os Guns são melhores quando são apenas rock’n’roll sem merdas e até parece que se estão a divertir mais quando tocam as canções dos outros. Aliás, se temas como “Live and let die” ou “Knocking on heaven’s door” foram de tal foram apropriados por eles que são praticamente canções dos Guns, os covers sempre fizeram parte dos seus alinhamentos ao vivo. Aliás, a primeira vez que ouvimos falar deles estavam a tocar o “Mama Kin”, dos Aerosmith, e o “Nice boys”, dos Rose Tattoo, naquele álbum/EP/whatever que é o “Lies”. E esta noite não é excepção: há os Damned pela voz de Duff McKagan (New rose), há homenagem a Chris Cornell recentemente desaparecido (“Black hole sun”), há no encore “Whole Lotta Rosie” que Axl lembra ter tocado naquele exacto palco há um ano atrás quando cá veio com os AC/DC – e há uma versão experimental sabe-Deus-porquê de “Wish you were here” (a vida é demasiado curta para se gostar dos Pink Floyd).
Portanto, está tudo no sítio e não há como não gostar do concerto, mesmo com as projecções mariquinhas (uma coisa é ver o Slash a solar no video do “November Rain” em frente a uma igreja, outra coisa é vê-lo a solar em frente a uma mega projecção new-age de nuvens, pôres-do sol e chuva de pétalas de rosa(!). Os Guns estão mais velhos e Axl até envelheceu pior que os restantes (a sua voz já não é a mesma, apesar de não ser tão ruim quanto pensávamos que poderia ser, e o facto de parecer que engoliu o Axl dos anos 80 faz com que as suas provocações sexuais em “Welcome to the junge” ou em “Rocket Queen” sejam um bocadinho deslocadas (não Axl, já não és nenhum sexual innuendo), mas o que é que isso interessa? E mesmo com o exercício de nostalgia que é, as canções continuam lá, exactamente como nos lembramos delas (por exemplo, o “Knocking on heaven’s door” continua a ter a intro do “Only Women Bleed”, de Alice Cooper, e Slash continua a tocar a theme-song de “O Padrinho”), há pirotecnia para sublinhar o que é uma verdadeira banda de estádio (não, os Muse não são uma banda de estádio) e quase 3 horas(!) de concerto. É 2017 e estamos a ver os Guns outra vez. E estamos felizes com isso.
PS .: Que raio fazia o Mark Lanegan enfiado entre os Guns e uma banda de hard-rock manhosa?
Fotos retiradas do facebook da Everything is New.
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