“Há no medo qualquer coisa de íntimo“. É desta forma que Carlos Vaz Marques introduz a temática do oitavo número da Granta portuguesa, uma edição onde, a grande maioria dos contos e a presença do Medo, atravessa cenários de guerra que vão do Iraque à Cisjordânia, do Afeganistão a Israel.
Uma das raras excepções a este cenário bélico dá pelo nome de “Enciclopédia Médica da Família”, de Valério Romão, o conto maior desta edição, a par de “Coventry”, um conflito familiar travado nas trincheiras escrito por Rachel Cusk.
Valério Romão presta homenagem ao pai sob a forma de conto, num magistral retrato dos emigrantes portugueses à antiga e da vida passada em aldeias que, dificilmente, se encontrariam no mapa de estradas. Aqui se revela a origem do nome de Valério após uma bebedeira de três dias bem fermentados, além do sentimento de alguém que está dividido geográfica e fisicamente entre dois mundos (um português nascido em França), mergulhado num sentimento de não pertença a ambos – um por decisão própria, outro por observação alheia: “Eu era estranho, aos olhos dos meus colegas e até dos meus professores, e estava ao lado da ideia que eles tinham do que era ser português. Aliás, duplamente ao lado: não era o que eles esperavam não era o que os meus amigos, da minha comunidade, esperavam. Durante muito tempo, e inclusivamente em Portugal, onde no primeiro ano de escola fui o melhor a português, eu estive ao lado, e acreditei que esse era o lugar que me estava destinado na ordenação geométrica do mundo: traçar órbita longínqua do núcleo do sistema no qual, embora pertencendo-lhe, eu era somente um corpo estranho e frio, um observador de que se esperava apenas ser a referência do local onde ninguém queria estar”. Valério no seu melhor, a tentar fazer as pazes com Portugal.
Rachel Cusk faz o leitor entrar na forma mais crua de bullying: “a eliminação deliberada dos fundamentos relacionais da realidade humana”. Se, por cá, somos ligeiros e pouco inventivos no que toca à arte do ignorar, os ingleses parecem ter dado um nome citadino ao local da indiferença: “De vez em quando, por causa de delitos genuínos ou imaginários, a minha mãe e o meu pai deixam de falar comigo”. O que, em Inglaterra, equivale a “mandar alguém para Coventry” – o mais parecido que temos será mandar alguém à fava. Com o seu estilo muito particular, Cusk aponta-nos a suspensão da descrença como um compromisso para a vida, seja na relação entre casais ou, porque não, entre escritor e leitor. Ainda assim, trata-se de uma missão invulgar: “Faço um esforço para suspender a minha descrença, mas em quê? Em que me resta descrer?”. Cusk em grande.
Neste oitavo número, o medo está em toda a parte e fala todas as línguas: Ana Luísa Amaral fala-nos do medo na infância, de quando o escuro e as unhas dos gigantes se misturaram formando ondas com o medo da vida, trazendo para dentro desta o sentimento da perda. Em “Mas faz sentido, não faz?”, os filhos e as palavras aparecem como os fazedores de novos sentidos, sendo as primeiras o antídoto para o medo e a escuridão; Clara Ferreira Alves – em “O que o medo faz” – leva o leitor para dentro de uma conversa sobre o medo num “clube de repórteres de guerra e de militares ex-forças especiais convertidos em operadores de câmara e aventureiros“, verdadeiros junkies subindo a hierarquia do medo; em “Dos blocos de notas (na guerra)” – adaptado para o livro “Rapazes de Zinco”, editado pela Elsinore -, Svetlana Alexievich aponta a masculinidade da guerra e deixa uma interrogação enquanto escritora: “Como é possível viver a história e ao mesmo tempo escrever sobre ela? É impossível agarrar pelo cachaço um fragmento da vida, toda a sujidade existencial, e arrastá-los para dentro do livro. Para dentro da história“; depois de questionar “para onde foram as noites frescas de Jerusalém?“, Alexandra Lucas Coelho conta-nos sobre um roubo onde o “Amuleto” de Bolaño surge como âncora de salvação. Em “Os Militares”, o medo não deixa de trazer um certo conforto; Robert MacFarlane traz-nos uma história de ódio em Israel, com duas cidades separadas por uma distância de cerca de 58 quilómetros em linha recta que, feitas as contas, parecem ter um mundo inteiro entre elas; em “Histórias da Babilónia”, Paulo Moura ensina-nos uma táctica para pôr os polícias do regime do nosso lado, regressando ao tempo em que Saddam Hussein ganhou as eleições com 99,9%, num “estado-pária, uma terra secreta e silenciosa, um lugar provisório e pouco respeitável onde um viajante podia ter a certeza de não ser encontrado“; “Depois da hora zero”, de Janine Di Giovanni, mostra-nos os dias do fim, quando “a terra das tamareiras, dos oásis e desertos ficaria marcada por postos de controlo e sepulturas“; “A Jihad do Amor”, de Aman Sethi, é qualquer coisa como um Romeu e Julieta à indiana; “Ambystoma mexicanum ou o labirinto invisível”, de Gustavo Pacheco, comprova a velha máxima de que a dor é o combustível de eleição para o motor da criatividade; quanto a “Hylophobia”, o ensaio fotográfico de Daniel Blaufuks, respira os ares de Blair Witch para nos oferecer uma máxima para a ameaça de taquicardia: “É normal ter medo. Mas não é normal deixar o medo controlar o sistema“. Haja coragem.
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