Tinha tudo para correr mal, com o país em rebuliço e movido pelo milagre – e praticamente canonização – dos três Efes: em Fátima, com o terço iluminado, o Papa Francisco levava a fé a um outro patamar, relembrando que Nossa Senhora de Fátima não é aquela senhora a quem se vai pedir favores em troca de velas de tamanho real; em Lisboa, o Benfica transformava o Marquês num muito urbano Woodstock, juntando-se ao restrito grupo do Tetra; em Kiev, Salvador Sobral cantava por dois e trazia o caneco da Eurovisão para casa, com um tema que, para os camones, deve ter soado como soam para nós os Sigur Rós – não percebemos puto mas, misteriosamente, eleva-nos a alma. Ainda assim, a edição de 2017 do LeV – Literatura em Viagem dobrou a esquina da Santíssima Trindade lusitana com distinção, tentando mostrar a quem por lá passou que, mesmo nestes tempos turbulentos, seremos (para) sempre europeus de gema.
Na conferência de abertura, intitulada “Einstein, viagens e literatura”, Carlos Fiolhais viajou pelas ondas gravitacionais para nos trazer uma versão mais humana de um deus da ciência, que terá ajudado gente como Picasso e Proust a criar universos artísticos paralelos – ou mesmo levado Mariah Carrey a dar o título da mais célebre fórmula conhecida a um dos seus discos, provando uma vez mais que não se deve julgar – e comprar – um disco pela capa. Nem mesmo um cientista.
Com moderação de Bruno Vieira Amaral, Tânia Ganho e Rachel Cusk discutiram sobre a importância – ou o exagero – dos clássicos, e de saber se o cânone é ou não um mito urbano que apenas vai aceitando gente que, quando dá por si e pela eleição, já está a fazer tijolo. Para Tânia, “os clássicos são quem somos, a nossa herança“. Aqueles livros que vamos relendo, como amigos a quem recorremos quando as coisas começam a dar para o torto. Rachel diz-se desconfiada em forçar os alunos a aprender Shakespeare, até porque, para os próprios ingleses, o autor chega a ser “meio estrangeiro”. “Ler Shakespeare é como correr a maratona, um misto de dor e adrenalina“, sendo a dor “mal compreendida nos heróis modernos“. Defendendo que a definição de cânone é muito limitada, Tânia considerou ser necessário um novo ensino, “com mais emoção e paixão e menos forcing“, criterioso mas sem nunca piscar o olho à simplificação. Contra as previsões – ou não – das casas de apostas, foi Tânia Ganho que acabou por levar para casa o caneco – e que mostrou a melhor pronúncia.
Com Tito Couto no papel de stand up moderator, Hélia Correia (“a nossa Afrodite das letras“) e Frederico Lourenço (“o Apolo coimbrão“) falaram dos tempos difíceis que vivemos, um upgrade à época descrita, em tempos, por Charles Dickens. De regresso à Grécia antiga, o seu território de eleição, Hélia referiu que “durante um tempo pareceu que os gregos iriam servir de exemplo ao resto da Europa“, mas que tal não aconteceu nem seria possível pensar hoje numa transposição do ideal grego para a moderna democracia. Ainda assim, o “respeito pelo humano” deveria ter sido uma herança eterna herdada dos gregos, bem como o uso livre da palavra: “Todo o cidadão tem de usar a palavra, e a palavra está a desaparecer“. Frederico Lourenço, que tem tido um papel exemplar e de verdadeiro serviço público – reconhecido com a atribuição do Prémio Camões – ao ter traduzido – e logo do grego – monumentos como “A Odisseia”, “Ilíada” e, mais recentemente, “A Bíblia”, disse estarmos a viver uma fase obscurantista, onde “as luzes estão-se a apagar“. Relativamente às traduções, considera que estas, “ao contrário das obras, têm um prazo de validade“, vendo nas suas algo que no futuro poderá ser melhorado por outras gerações. Para Frederico, a grande lição dos gregos foi a do contraditório e a vertigem do pensamento livre: “O importante é o contraditório, o pensamento, que devemos exigir de quem anda na política“.
David Mitchell, numa entrevista de vida conduzida por Pedro Vieira e Tito Couto, trouxe o charme e o humor britânico, entrando desde logo no espírito de um fim-de-semana feito de crenças: “Sou uma virgem portuguesa“. Numa conversa que começou pela adolescência, Mitchell afirmou que mais do que o talento é preciso disciplina, e que apenas aos 25 anos seguiu esse mantra. Abordando a questão da criatividade, considerou-a uma qualidade importante mas que “é como uma App com a qual todos nascemos“. Na sua concepção de um ensino moderno, “são os departamentos das escolas que precisam de criatividade, não as crianças“. Afirmando que o processo de criação e pesquisa é diferente de livro para livro – “tanto leio a New Scientist como o The Economist” -, referiu que “vivemos em várias dimensões temporais, e a acreditarmos na reencarnação esta vida é apenas uma prequela“. “As Horas Invisíveis”, editado pela Presença o ano passado, foi deixado de fora da conversa, que apenas olhou para o célebre “Cloud Atlas – Atlas das Nuvens”, lançado pela Dom Quixote antes de a Presença ter comprado os direitos em tempo de vacas gordas. Mitchell recusou a ideia de o livro apresentar uma estrutura complexa, considerando-o “apenas pouco usual. Um pouco como As Mil e Uma Noites“. Ainda houve tempo para o escritor britânico elencar as 5 componentes que um bom livro precisa – enredo, personagens, ideias, estilo e estrutura -, mostrando-se satisfeito com a adaptação de Cloud Atlas ao grande ecrã – mesmo que não considere que se trata do seu filme. Para Mitchell, o importante no acto da escrita é não travar as obsessões e compulsões que habitam dentro de cada criador, essas “desordens mentais que não precisam de tratamento“. Prometeu ainda sete anos de felicidade a quem fizesse a primeira pergunta no público, saindo Matosinhos com o título de great knight.
Por esta edição do LeV passaram ainda outros nomes: Rodrigo Guedes de Carvalho, que depois de um silêncio literário de dez anos voltou às edições com “O Pianista do Hotel”; Valdemar Cruz – autor de “Retratos de Siza” -, que na ausência forçada do arquitecto Siza Vieira contou alguns episódios fascinantes vividos ao lado do maior arquitecto português; ou Jesús Carrasco e Xavi Ayén, que discutiram as muitas vozes e literaturas europeias.
Muitas das sessões tiveram casa cheia, mas há que reflectir na ausência de público que vai da adolescência à quase meia-idade. É certo que se está a trabalhar nas escolas como quem planta a semente a ver se a coisa pega daqui a uns anos, mas não deixa de ser preocupante ver este afastamento geracional em muitos eventos ligados à literatura. Não é nada que não se resolvesse com uma bandeja de shots ou um DJ a horas tardias, mas talvez se possa pensar, no futuro, numa ou outra sessão que faça pontaria ao público mais jovem. Não precisa de ser o Harry Potter, mas alguma coisa certamente se arranjará. Até para o ano Matosinhos.
Fotos: Booktailors
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