Tem um olhar gelado, penetrante, como um diagnóstico fatal. A cabeça é calva, reluzente, e a barba aparada, levemente diabólica. O seu nome é Walter White, também conhecido como “Heisenberg” no submundo clandestino do tráfico de metanfetaminas.
Por detrás da icónica personagem está o actor Bryan Cranston, que lhe deu corpo na aclamada série americana “Breaking Bad”. O seu retrato do professor de química que se transforma, em seis temporadas, num complexo e atormentado vilão, trouxe-lhe uma fama sem precedentes, e transformou-o num dos actores mais bem cotados de Hollywood.
Cranston ensaia agora a incursão no mundo da literatura, com o lançamento da sua autobiografia, “Uma Vida de Histórias” (Marcador, 2017). Um relato franco e directo da vida de uma estrela dos ecrãs, que poderia facilmente ter acabado a fazer outra coisa qualquer.
A sua infância não foi fácil. O pai era um ex-pugilista à procura de sucesso em Hollywood – nada menos do que o estrelato lhe chegava. Viveu uma vida cheia de esquemas, que nunca resultaram em pleno. “Ideias não lhe faltavam. Iniciava cada uma destas iniciativas com vigor, mas raramente tinha sucesso”, revela o actor. Quando tinha 11 anos, os pais divorciaram-se e a mãe nunca recuperou da separação, refugiando-se no alcoolismo e na apatia. Cranston teve de lutar para manter ao largo as sombras desse período.
Cada capítulo do livro retrata um dos inúmeros papéis que o actor desempenhou ao longo da sua vida – e foram muitos e diversos. Ainda antes de ser actor foi distribuidor de jornais, segurança de supermercado, matou galinhas numa quinta, atravessou a América de mota com o irmão, foi suspeito de homicídio, quase entrou na Academia de Polícia de Los Angeles e realizou casamentos como Pastor, inclusive em aeronaves.
Só com 25 anos se dedicaria a ser actor a tempo inteiro. Coleccionou papéis secundários em novelas e em tudo o que era série dos anos 80 e 90: participou em “Seinfeld” como Tim Whatley, “o dentista das estrelas”, e num episódio de “Ficheiros Secretos”, onde conheceu o guionista Vince Gilligan, que mais tarde o convidaria para protagonizar “Breaking Bad”. Mas foi num papel cómico que conseguiu chegar pela primeira vez ao estrelato: como Hal, “pai de família” na série “Malcolm in the Middle” (em Portugal chamava-se “A Vida é Injusta”). Trabalhou em 151 episódios, ao longo de sete anos.
Como biografia de uma celebridade, o livro é surpreendentemente humilde. O actor praticamente não menciona os Emmys que ganhou, a nomeação para o Oscar (pelo seu papel em “Trumbo”) ou o prémio “Tony” de teatro pela sua interpretação de Lyndon Johnson na peça “LBJ”. Em contrapartida, é dada muita atenção ao seu papel como amante, marido e pai.
A escrita de Cranston é directa e pessoal: não estamos perante uma biografia “embelezada” para dar uma camada de verniz redentor – o actor não glorifica o passado e assume as suas decisões, inclusive os seus erros, com candura. Sobressai o retrato de uma pessoa centrada, com valores bem definidos no que diz respeito ao trabalho, à família, e à celebridade. Alguém que parece ter vivido várias vidas numa só, e que acumulou alguma sabedoria à conta disso.
“Uma Vida de Histórias” é também um bom livro para quem se interessa pelo ofício de actor, uma janela sobre o método de Cranston para encarnar os personagens, lidar com as audições, a fama e a arte da representação. O actor explica como teve de aceder a lugares tenebrosos da sua mente, como combustível para a performance memorável de “Breaking Bad”.
A obra tem, obviamente, um interesse acrescido para os fãs da série, uma vez que, pelas palavras do actor, acedemos aos bastidores e a algumas curiosidades que de outra forma permaneceriam anónimas. É, todavia, um livro recomendável também para quem nunca viu “Breaking Bad”, porque a vida de Bryan Cranston é pelo menos tão fascinante como a do temível Walter White.
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