Apesar de o ano estar ainda a arrumar a casa e a fechar as contas do primeiro trimestre, será seguro dizer que “A Forma das Ruínas” (Alfaguara, 2017) é um dos grandes livros de 2017 com edição portuguesa.
Misturando a autobiografia com a ficção, Juan Gabriel Vásquez convida o leitor a visitar a Colômbia para uma história política feita de obsessões e conspirações, que parte de dois assassinatos de figuras que tentaram transformar a Colômbia num país mais progressista: o de Rafael Uribe Uribe, em 1914, e o de Jorge Eleiécer Gaitán, em 1948. Um livro onde Vásquez se transforma, para lá de escritor, no narrador e investigador do livro, a peça central que tenta perceber como um crime ocorrido em 1914 pode marcar a vida inteira de um país no século XXI. Estivemos à conversa com o escritor colombiano na última edição das Correntes d’Escritas.
À semelhança do livro anterior, “A Forma das Ruínas”, parte do real para o transformar em literatura. E, também, para se colocar a si próprio como a personagem central do livro, simultaneamente narrador e investigador. O real e o pessoal são a matéria-prima da sua ficção?
No caso deste livro teve a ver com o incidente que está na sua origem. Um encontro real que tive com uma personagem que, no romance, aparece com um nome diferente mas que existe na realidade, e que um dia me convidou para sua casa com a promessa de me mostrar algo único: uma vértebra, uma parte da coluna vertebral de Jorge Gaitán, um político assassinado na Colômbia em 1948, e também uma parte do crânio de Rafael Uribe Uribe, outro homem assassinado na história política colombiana, isto em 1914. Foi algo tão intenso, tão real para mim, que esteve não apenas na origem da novela como me convenceu também de que o narrador teria de ser eu, Juan Gabriel Vázquez, de modo a conservar a potência daquele momento e respeitar o facto de, naquele momento, ter nascido em mim a curiosidade de investigar sobre estes assassinatos e de procurar os segredos e os mistérios que a história colombiana esconde.
Pode dizer-se que há aqui um resgate histórico de duas figuras – Uribe Uribe e Jorge Gaitán -, que tentaram fazer da Colômbia um país socialista – ainda que Gaitán seja descrito a certa altura como um mestre da “manipulação grosseira”? Qualquer coisa como um manual de história a partir da literatura?
É, parece-me, um exame dos momentos mais obscuros da história colombiana e das tentativas que os colombianos fizeram em descobrir a verdade sobre alguns dos acontecimentos históricos que continuam a ser mentirosos, algo que todos os países – pelo menos todos os países a que chamamos ocidente – partilham. Em qualquer momento da sua história há segredos, mistérios, lugares obscuros dos quais não se sabe realmente o que se passou, e que apresentam um grande índice de violência sobre a qual a História não disse a verdade. Era isso que me interessava, e por isso no romance existe uma personagem chamada Carballo, alguém que está firmemente convencido de que a História é uma grande teoria da conspiração, de manipulação e de segredos. Carballo crê que chegou a uma revelação, a uma verdade sobre estes acontecimentos que marcaram os colombianos. E isto é algo partilhado por todos os países: querer desvendar aqueles momentos obscuros sobre os quais a História não contou a verdade. O romance trata de examinar essa relação difícil que temos com os mistérios do nosso passado.
Mudou-se para Barcelona aos 26 anos, onde residiu antes de recentemente voltar ao seu país de origem. Escrever sobre a Colômbia à distância foi uma forma de nela permanecer? Ou faltava-lhe, como diz Carballo, “um compromisso com as coisas difíceis deste país“?
Sempre tive uma relação de tensão com o meu país. Quando cheguei a Barcelona, o primeiro livro que escrevi foi um livro de contos chamado “Los amantes de todos los santos “, que não falava sobre a Colômbia. Sentia que não tinha aprendido a falar de um passado que não conhecia, que não entendia, e que por isso não tinha autoridade para escrever sobre ele. Com o passar dos anos, porém, fui-me dando conta de que a verdade era justamente a contrária, que não entender o meu país justificava que escrevesse sobre ele. A escrita de romances é para mim um acto de investigação, de averiguação. Um escritor não escreve romances quando sabe tudo, mas antes porque ignora e porque tem necessidade de fazer perguntas. Aí ficou claro que o meu país era a minha obsessão, o meu tema, a minha preocupação, e desde então não escrevi um único livro que não fosse obsessivamente colombiano, tratando de encontrar na história do país essas emoções, esses sentimentos que convertem um episódio local em algo universal, que tenha significado e importância para pessoas de outros países.
Estará a Colômbia preparada para o liberalismo ou, como diz o Frei Ezequiel, o liberalismo é pecado?
A história colombiana trava essa luta constante desde os primeiros anos da independência. Em 1820 existiam já essas duas maneiras claras de ver e de querer um país que, por comodidade, dividimos em atitude liberal ou atitude conservadora, mas que vai muito além disso. Passa pela religião, por uma ideia de justiça social num país que sempre foi muito injusto e desigual. Os dois crimes que estão no centro do romance têm muito a ver com esta pergunta. São dois homens que quiseram, nalgum momento, converter a Colômbia num lugar mais progressista, mais liberal, e se deram conta de que existem forças obscuras que estão sempre por baixo e que tratam de cortar esses impulsos. Porque está isto tão impregnado em toda a história colombiana do século XX? É uma das questões que o romance coloca.
Para Carballo, o 11 de Setembro “foi um golpe interno, uma demolição controlada”. Chegámos aquele ponto da crueldade onde em cada morte vemos uma conspiração?
Não posso dizer que esteja de acordo com Carballo. Um dos temas do romance são estas duas formas de ver a história: uma como uma grande conspiração, que defende que tudo o que aconteceu foi decidido ou manipulado por alguém, e uma outra que crê que a história é um resultado de azares, de – como se escreve no livro – “paixões humanas que são imprevisíveis e ingovernáveis“. Estas duas formas sempre competiram, guerreando pelo direito de contar a história, e eu queria pô-las em jogo. O que se passa é que os livros, com muita frequência, fazem algo que eu não desejava ou previa. Para mim Carballo, quando comecei a escrever o livro, era um louco profundo, mas no final do livro descobri que havia um fundo, na sua vida, que explicava essa sua maneira de olhar o mundo. O livro trata de entender Carballo, não de o julgar ou condenar. Como tantos outros protagonistas dos meus livros, é um homem ao qual a história marcou, cuja vida foi transtornada pela violência da história colombiana e, entre muitas outras coisas, o livro faz-nos reflectir sobre como nos marca a violência passada, a violência que está no passado publico dos países, e de como esta passa de geração em geração provocando um efeito nas nossas vidas passadas. Isto tem a ver com a parte mais autobiográfica da novela, com o nascimento das minhas filhas gémeas, que coincidiu com o momento em que me chegaram às mãos os ossos dos mortos da história colombiana. Isso foi importante porque a novela, para mim, nasceu com as perguntas que fiz nesse momento. Como vão receber as minhas recém-nascidas a violência dos anos passados? Como é possível que os crimes de Gaitán, em 1948, e o de Uribe, em 1914, se transmitam de geração em geração e possam moldar, de alguma forma, a vida daqueles que apenas estão a nascer? E que podemos fazer nós para os proteger? Todas estas perguntas estiveram na origem do livro.
Uribe foi mais importante do que Bolívar? Ou apenas no dia do funeral?
Separa-os um século inteiro, mas sobretudo a visão daquilo que a Colômbia poderia ser. A visão de Bolivar era profundamente conservadora, e o momento em que um grupo de conspiradores tentou sem sucesso assassiná-lo deve-se, em boa parte, a este ter tomado poderes quase ditatoriais como líder do governo. São ambos homens formados na guerra, no campo de batalha, mas que no fundo eram homens políticos. A mim sempre me pareceu muito revelador que tenham sido ambos vítimas de um atentado – o de Bolivar sem sucesso -, num país que assassina os seus líderes. Aquando do assassinato de Uribe, alguém disse que seria algo que nunca se iria repetir, um acto único, mas que se repetiu em 1948, nos anos oitenta e noventa e, muitas vezes, na pior época da violência recente. De forma que aquilo que começou como um atentado falhado contra Bolívar, em 1828, foi uma tendência do meu país, por isso queria examinar onde terá nascido esta doença nacional.
Como é a Bogotá de hoje? Ainda é uma “cidade inconstante“?
A razão de os meus livros se terem concentrado na cidade de Bogotá foi esse desejo de construir um lugar onde a cidade fique quieta, onde possa permanecer, e que trate de recuperar o seu passado mais conflituoso. A sensação que tinha ao caminhar na cidade era a de que em cada esquina havia um índice de violência que havia marcado a história do país. E todas as minhas novelas, desde “Os Informadores”, trataram de envolver a cidade nesse cenário.
Que cicatrizes deixou Pablo Escobar na sociedade colombiana?
Ainda não chegámos ao fundo do que foi o terrorismo dos anos oitenta e noventa, não chegámos a entender por que se passou isto, de onde saiu Pablo Escobar, quem permitiu que nascesse esta figura ou que o narcotráfico tomasse conta da democracia de um país. Não chegámos a compreender bem tudo isto, e por essa razão continuamos a contar historias. Um país conta histórias sobre aquilo que não entende.
Vargas Llosa e Borges. Foram estes os seus guias literários, sobretudo Borges, de quem refere o conto “A Morte e a Bússola”?
A minha relação com a literatura latino-americana está marcada por muitos nomes. Vargas Llosa foi sempre muito importante para mim, também como modelo de um escritor dedicado a cem por cento ao ofício, um exemplo daquilo que a disciplina e a vocação podem fazer. Mas na minha forma de entender a literatura sempre existiram outros três nomes: Borges, García Márquez e Juan Carlos Onetti. E, neste momento em que falo destes três, sinto que tenho também de mencionar Carlos Fuentes. Se aquilo a que chamamos boom latino-americano nos deixou alguma lição, foi o direito de nos apropriarmos de todas as tradições, de romper as fronteiras da literatura colombiana, de aceitar a influência da literatura argentina, ou peruana, ou mexicana, ou irlandesa, ou polaca, ou russa, que é o que explica Borges num ensaio fantástico chamado “O Escritor Argentino e a Tradição”. Esta liberdade de misturar tradições é uma herança directa do boom latino-americano.
Quando descreve a descoberta do livro de Marnikovic, refere aquele dia em 1999 “em que abri o livro estranhíssimo de um tal W. G. Sebald“. Sente que a sua escrita, nomeadamente a forma de olhar e de escrever literariamente a História, tem alguns pontos de contacto com Sebald?
Foi um autor que marcou alguns anos da minha vida de leitor, mas creio que a importância que teve para mim refere-se a certas preocupações, ou melhor obsessões, que tinha, e às quais não conseguia dar forma; em particular o passado, a memória e a presença que o primeiro exerce sobre nós e na nossa vida presente. Sebald encontrou uma forma de explorar o passado e a memória abrindo as portas para uma mistura de registos, de imagens dentro da ficção que, seguramente, tornou a minha vida mais fácil.
“E, no entanto, essa era a única coisa que me interessava a mim da leitura de romances: a exploração dessa outra realidade, não a realidade do que realmente aconteceu, não a reprodução romanceada dos factos verdadeiros e comprováveis, mas o reino da possibilidade, da especulação ou a intromissão que o romancista realiza em lugares que estão vedados ao jornalista ou ao historiador“. É esta a sua visão enquanto escritor do que é a literatura? Que esta, mais do que um prazer, é uma missão?
É possível, mas essa é uma declaração de princípios sobre aquilo que pode ser a literatura. Para mim os romances devem contar aquilo que apenas eles podem contar: fazer o que nem o jornalismo ou a história podem. Ir a lugares onde estes não podem ir e contar a sua história. Interessam-me os livros que vão a lugares apenas alcançáveis com o poder da ficção, aquilo a que chamamos imaginação moral. Essa foi na realidade a minha obsessão com todos os meus livros. Gosto muito que tenha escolhido esta frase porque é uma espécie de poema metido no romance.
Falando de solidão, esta é uma palavra que lhe parece estar associada, quer pela sua vida como, por exemplo, pela banda sonora que escolhe para o programa de Carballo (Serrat, Paul Simon…). Dir-se-ia uma pessoa solitária?
Creio que sim, sou uma pessoa solitária que vive dedicada à família e à escrita de livros. Uma das razões pela qual aceito vir a eventos como este é precisamente sair dessa solidão e encontrar-me com gente que me estimula, e que também tem consciência desta vida solitária.
“Entre a sensatez e as desmesuras, os acertos e os erros, a inocência e os crimes”. É desta forma que o narrador fala do país que herdou, e que passará da mesma forma aos filhos. Antes disso, temos as palavras de Carballo: “Estou a falar de um monstro, um monstro imortal, o monstro com muitas caras e muitos nomes que tantas vezes matou e há-de matar outra vez, pois aqui nada mudou em séculos de existência e nunca irá mudar, pois este nosso triste país é como um rato a correr numa roda.” Como vê o futuro da Colômbia? Com receio ou esperança?
A escrita deste romance não pode ser separada do que se passou nos últimos anos na Colômbia. Comecei a escrever o livro em 2012, mais ou menos ao mesmo tempo que eram tornadas públicas as conversações de paz entre o governo colombiano e a guerrilha das FARC. Esta grande questão nacional, de como deixar para trás cinquenta anos de violência, de tratar de fazer outro país que possa reinventar-se, que possa terminar com a guerra, essa pergunta está dentro do livro. Uma pessoa que respeito muito disse-me que este era o primeiro livro do pós-conflito, que acabou há alguns meses quando a guerra terminou finalmente, quando a paz foi assinada. O livro quer também explorar isto: até onde esta história de violência é algo que levamos inevitavelmente connosco ou se podemos virar a página e começar outra nova história.
O realismo mágico é uma fraude?
O realismo mágico é uma fonte de muitos mal-entendidos. O maior deles é julgar-se que por se ser colombiano se tem de sofrer a sua influência. Mas aquilo que hoje chamamos de realismo mágico é uma mistura muito complexa, uma visão do mundo relacionada com a biografia de García Márquez, por ter nascido em 1927 no lugar onde nasceu, uma povoação de 5000 habitantes. Esta maneira de entender o mundo não tem qualquer relação com a minha, que nasci 50 anos depois numa capital de 7 milhões de habitantes em pleno centro da Colômbia. A literatura é uma questão de método, e o escritor tem de encontrar o seu e colocar nas páginas que escreve a sua visão do mundo. A minha busca é totalmente diferente da busca que empreendeu Márquez, que culminou em “Cem Anos de Solidão”.
Carbalho fez-lhe a seguinte pergunta, mais em jeito de ultimato: “Estará à altura de escrever o livro da sua vida?“. Acha que esteve à altura e será este o livro da sua vida?
(Risos) Julgo que “A Forma das Ruínas” é melhor tentativa – não sei se o melhor livro – que fiz para entender a relação que tenho com o meu país e a sua violência, para entender os mecanismos internos da violência colombiana, desvendando alguns segredos e mistérios, públicos e privados, que marcaram a minha vida. É pelo menos o livro mais sincero, franco, directo, autobiográfico e honesto que escrevi até agora.
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