Poeta ou músico? Não se preocupem, não vamos aqui recuperar a discussão à volta da atribuição do último Nobel da Literatura a Bob Dylan. Foi apenas uma das questões que colocámos por e-mail a Mariano Marovatto, que trocou o Rio por Lisboa e acaba de lançar “Selvagem”, o seu terceiro longa-duração. Um disco que foi beber às raízes e, de certa forma, reinventar o folclore português e brasileiro.
“Chamada de Aricuri” personifica um pouco o sentimento deste “Selvagem”: uma cantiga de embalar para alguém que tenta adormecer num recanto da Floresta Negra. Como partiu a ideia de recriar canções adormecidas que fazem parte do folclore brasileiro e português?
A ideia veio mesmo de uma cantiga de embalar que está presente no meu disco anterior, de 2013. Eu estava a procura de uma cantiga indígena brasileira e de repente me vi diante não só das recolhas do folclore brasileiro da primeira metade do século passado, feita pela equipe de Mário de Andrade, mas também diante do trabalho, que até então desconhecia, de Giacometti e Lopes-Graça em Portugal. Me assombrou em perceber o quanto esse material, dos dois lados do Atlântico, não fazem parte da memória normatizada da evolução musical dos dois países. Juntei então esse repertório não-civilizado, marginalizado, selvagem. Por acaso, buscando os temas que se adaptariam melhor ao meu timbre, ao meu gosto, acabei selecionando canções que dizem respeito diretamente às minhas raízes lusófonas: o nordeste brasileiro e o norte de Portugal. Esse disco, como disse, surge nessa floresta negra, mas diz respeito a todos os falantes do português do Brasil e de Portugal. Gosto muito que Selvagem seja esse disco que faz a travessia da escuridão até a luz.
És um pessimista por natureza ou convicção?
Por convicção. Se fosse pela minha natureza eu seria otimista a maior parte do tempo. Felizmente tenho dado bastante ouvidos para a minha natureza, ultimamente.
Consideras-te essencialmente um poeta ou um músico?
Talvez, na essência, o que fica mesmo é a coisa do bardo. Veio antes da dissociação das duas funções, era o que Homero fazia, e que agora é retomado com os prémios literários de Bob Dylan.
Quais os poetas e prosadores que te marcaram enquanto leitor?
Os definitivos e definidores surgem sempre quando ainda estamos em formação. Por conta das razões do mundo à minha volta, foram todos, nessa época, homens, brasileiros e brancos, como Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Raul Pompeia, Machado de Assis (o único negro) e Guimarães Rosa. Para entortar esse panteão, vieram depois Ana Cristina Cesar, Lima Barreto, Laura Riding, Luiza Neto Jorge, John Cage, Roland Barthes e, principalmente, meus amigos poetas e prosadores, coetâneos, tanto em Portugal como no Brasil.
Na edição de 2015 do FLIP, disseste que “no meu país, um soneto não paga nem um chopp”. Ainda assim, penso que não terá sido esse o motivo que te levou a adoptar Lisboa como morada desde o ano passado.
Mas desconfio que em Portugal ainda dê para pagar umas duas imperiais – com uma cerveja de melhor qualidade do que a brasileira – com um soneto, nem que seja cada uma 50 cêntimos. O chopp, no Rio de Janeiro, é ruim e muito caro. Embora parte da vida, não foi somente a cerveja e a poesia que me fizeram mudar para Lisboa. Uma série de outras razões, de cunho afetivo, prático e ancestral, me levaram até aqui. E aqui estou.
Como foi essa experiência FLIPiana, onde estiveste sentado à mesa com a Matilde Campilho?
Foi muito bonito e aterrorizante. A Flip foi um lugar que frequentei muito quando era mais novo. Conheci amigos, amores, autores e entendi um tanto de política editorial por lá. Ser convidado pela organização do festival para falar sobre a minha obra – e ao lado da minha amiga/irmã Matilde – consolidou uma etapa.
O que é isso de se ser também, como reza a tua biografia, “pesquisador e arquista literário”?
Durante muito tempo trabalhei no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Lá estão guardados os papeis de uma centena de escritores que delinearam a cultura brasileira. Drummond, Machado, Clarice, Vinicius de Moraes, Bandeira, e outros menos conhecidos do público português, mas igualmente gigantes. Meu doutorado, por exemplo, teve como objeto de pesquisa o acervo do poeta e compositor Cacaso, figura incontornável dos anos 1970-80. Com essa experiência, do trato com o rascunho vivo e muitas vezes inédito de todos esses escritores, trabalhei e pesquisei em outros arquivos brasileiros para outros projetos. Gostava imenso de um dia lidar com os papeis dos escritores portugueses que admiro.
Foi, aliás, desse teu trabalho de pesquisa, que nasceram alguns livros, como aqueles “dedicados” à banda Legião Urbana e ao poeta Cacaso.
Sim. O do Cacaso, expliquei acima. Sobre o livro da Legião Urbana, graças ao guitarrista Dado Villa-Lobos, tive acesso ao material gravado inédito do álbum “As Quatro Estações”. A partir desse material, contei a história da gravação do disco, no livro.
Um dos trabalhos que tens entre mãos é a tradução para português com sotaque de “Silence”, o livro de John Cage,que sairá este ano no Brasil pela editora Cobogó. Algum fascínio especial por Cage?
Estou editando o “Silence” – que em português fica, naturalmente, “Silêncio”. A tradução ficou a cargo de Beatriz Bastos e Ismar Tirelli Neto, que além de tradutores, são poetas brasileiros da minha geração, maravilhosos. O Cage tem essa peculiaridade fantástica de ter atravessado o século XX, enquanto um de seus principais expoentes, dizendo que o século XX estava errado. Ou melhor, ele não dizia nada, ele dava voz ao outro fazendo-o se perguntar sobre seu modo de encarar a vida e a arte. É talvez o filósofo mais saudável do ocidente. O mais impressionante é que o “Silêncio”, seu principal livro, nunca havia sido traduzido para o português, o que é muito muito estranho. Já estamos em vias de reparar esta falta. O livro será publicado em breve.
Como tem sido conciliar a vida académica com a de poeta e músico?
A vida académica está em stand by há algum tempo. Creio que volto algum dia. O poeta e músico convivem aqui dentro, mas na prática cada um atua no seu turno, senão vira bagunça. Agora, com o “Selvagem” o músico tem atuado muito mais. O poeta surge nas horas livres.
No Brasil, diz-se que o teu ganha-pão vinha de apresentares o programa “Segue o Som”, na TV Brasil. Vamos ver-te em breve em algum canal português a dar-nos música?
Isto seria mesmo fabuloso, adorava apresentar e conversar sobre música na televisão cá em Portugal. Quem sabe em breve?
Depois dos discos, é de esperar uma edição portuguesa de alguns dos teus livros? A edição brasileira que temos por cá custa os olhos da cara.
Sim, essa coisa de importação é mesmo cara, não é? Os livros portugueses no Brasil também custam muito. Deveria haver qualquer política que abrandasse estas taxas entre os países lusófonos. Posso estar enganado, mas em língua espanhola os livros trocados entre os países latino-americanos e Espanha não costumam ser tão caros. Posso estar enganado. Queria muito que a lusofonia fosse menos mito do que realidade. Mas, por enquanto, há alguns poemas meus recém-publicados na antologia de poetas brasileiros do século XXI chamada “Naquela Língua”, da editora Elsinore.
Quando vai acontecer a festa de lançamento de “Selvagem”?
A festa será no dia 17 de março, às 22:30, na Casa Independente, no Largo do Intendente em Lisboa. Estão todos convidados para este que será o concerto de apresentação do álbum!
Fotografia: Anastasia Lukovnikova
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