“A outra metade de mim” (Bertrand, 2016), de Affinity Konar (Bertrand Editora, 2016), é um livro sobre identidade, memória e confronto. O reconhecimento de que se é o próprio entre muitos. Que existem laços e identidades comuns que se mantêm para toda a vida, mesmo nas mais adversas condições e provações. Que a identidade que permite que uma pessoa se defina e tenha memória seja reconhecida e capaz de se reconhecer, mesmo quando exposta às vivências mais traumáticas e desestruturantes.
Há quem considere que quando uma pessoa perde a memória perde, também, a sua própria essência – a memória que nos modela e é também por nós modelada, numa perfeita dialética com a identidade, conjugando e nutrindo-se mutuamente, apoiando-se para produzir uma trajetória de vida, uma história, uma narrativa.
“Pearl tem a seu cargo o triste, o bom, o passado. Stasha fica com o divertido, o futuro, o mau.” Estamos em 1944. As meninas foram enviadas para Auschwitz com a mãe e o avô. Pearl e Stasha Zamorski, gémeas judias da Polónia, refugiam-se no seu próprio mundo, reconfortando-se com a linguagem secreta que partilham e as brincadeiras da infância, aparentemente alheadas da insanidade da época. O confronto com a realidade não tarda, duro e cruel, ainda que disfarçado pela mentira de uma aparente benesse por serem crianças, gémeas e aparentemente perfeitas. O preço do interesse granjeado não deixou de se fazer sentir da forma mais atroz e contraditório.
Até onde se consegue preservar a identidade pessoal quando expostos a tantas experiências? Será que a transformação física e emocional imposta por vivências improváveis, traumáticas e imponderáveis altera a identidade que procuramos preservar como se de um ponto cardeal se tratasse? As gémeas Pearl e Stasha Zamorski passam-nos uma convicção de integridade, essência e preservação, independentemente do que viveram, como se as mudanças físicas impostas pela crueldade do médico Josef Mengele não tivessem valor real. À desfiguração física gradual, lenta e calculada de uma das gémeas, como se de uma prova de resistência se tratasse, sobreveio a integridade do referencial afectivo e da própria imagem física, aparentemente inatacável pela barbárie a que estavam expostas.
Uma narrativa que confronta a beleza dos mais belos sentimentos e afectos destas duas irmãs com um retrato cru, inspirado em factos reais relacionados com Josef Mengele, médico das SS conhecido pelas suas experiências desumanas com os prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz. Responsável pela distinção e selecção dos que serviam para trabalhar e dos que seriam destinados às câmaras de gás, Mengele praticou experiências desumanas em prisioneiros do campo, especialmente em gémeos. Sob a alçada e atenção do médico, na qualidade de cobaias no célebre Zoo de Mengele, Pearl e Stasha vivem privilégios e horrores desconhecidos dos demais. Convicta de que uma participação voluntária irá salvar a sua família, Stasha deixa que Mengele faça dela sua mascote. Quando Pearl desaparece durante um concerto organizado por Mengele no inverno de 1944 Stasha sofre, mas não deixa de acreditar que a sua gémea continua viva. Depois da libertação de Auschwitz, com Feliks, um rapaz que jurou vingar o seu próprio gémeo, atravessa toda a devastação da Polónia em busca do médico nazi, acreditando conseguir assim trazer Pearl de volta. Nesta viagem marcada pelo perigo e pela esperança, vai descobrindo o que aconteceu ao mundo, ao mesmo tempo que tenta imaginar um qualquer futuro possível.
Para além de informação histórica reportada à época, através de Pearl e Stasha Zamorski tomamos contacto com o valor da intimidade e a consolidação do “eu”. Uma espécie de diálogo íntimo, possível graças à forma como são partilhadas referências de pertença à família e ao grupo social e religioso. Naquele contexto adverso, a individualidade parece sobreviver graças aos laços culturais e afectivos. Ter um nome, uma data de nascimento e uma carga genética que transmite informação sobre a própria individualidade.
Haverá uma componente biológica no conceito de identidade pessoal? Será possível preservá-la quando parte dos nossos traços físicos externos fica irreconhecível? Até que ponto o nosso corpo expressa uma parte daquilo que somos como pessoas?
“Para onde quer que olhássemos, havia um duplicado, um ser idêntico. Quando passámos pelas raparigas nos poleiros, vi as escolhidas, as que haviam sido selecionadas para sofrerem de determinada forma, enquanto a outra metade permanecia intocada. Em quase todos os pares, uma gémea tinha a coluna disforme, ou uma perna em mau estado, um olho tapado, um ferimento, uma cicatriz, uma muleta.”
Affinity Konar autora americana, orientadora, copywriter e editora de materiais didácticos para crianças, inspirou-se em terríveis testemunhos, narrados em livros de não-ficção, de quem teve a infelicidade de passar pelas mãos de Josef Mengele. Através das irmãs Pearl e Stasha realizamos uma viagem de confronto com a crueldade, ainda que de uma forma quase poética, atenta à beleza das emoções expressas pelas protagonistas, inclusive o imponderável perdão: “O meu perdão foi uma repetição constante, o reconhecimento de que continuava viva, a prova de que as experiências deles, os seus números, as suas amostras, tudo isso falhou – eu continuei a viver, um tributo aos seus erros de cálculo, pois subestimaram o que uma rapariga consegue suportar. O meu perdão deixou claro o seu fracasso em aniquilar-me.”
Sem Comentários