“Brasil-Ao-Deus-Dará, esperando o que vai vir, achando que não tem jeito, mas sempre dando um jeitinho. Brasil-Interdito & Transgressão, um gerando o outro, mamilo tapado/bunda de fora, tráfico no morro/consumo no asfalto. Uma mão para botar menor na cadeia, outra para alimentar o que faz dele ‘bandido’. Despenalização das drogas: fim do tráfico. Vai encarar? (…)Brasil-Privataria, entregue a empreiteiros. Sistema político blindado contra a sociedade. Economia se modernizando na ditadura civil-militar, potência industrial sob signo autoritário e, a partir de Collor de Mello: exportar, exportar, exportar.”
Na impossibilidade de não associar o nome de Alexandra Lucas Coelho ao encanto do Brasil – não houvesse, antes de mais, um primeiro resultado literário, um conjunto de crónicas reunidas e publicadas em “Vai, Brasil” (Tinta da China, 2013) –, há-que preparar o leitor para o mundo tão infinito e diversificado, separado por milhares de quilómetros do oceano Atlântico e vivido pela escritora durante quatro anos, em primeiro como jornalista e, num outro momento, só como cronista do Público. Uma proximidade tão intensa que, pelo meio, surgiu “O Meu Amante de Domingo”, à medida que esta obra ainda não via a luz do dia. São demasiados pormenores que podem aproximar ou separar o Brasil de Portugal: o ponto de vista de cada leitor é fulcral para esta relação que se intensifica com o passar do tempo. Um país tão violento e racista, com um sistema político com tantas falhas, causador de recentes revoltas nas ruas, pode afastar-se de Portugal à medida que a cultura – não estivesse esta narrativa cercada por tanta música de géneros tão diversos – e o idioma, num mesmo patamar, e o passado, num outro, acabam por aproximar. Opostos que, num olhar curto e breve, acabam por juntar.
Contado ao longo de sete dias, em diferentes anos, numa inspiração clara com o Génesis (origem, criação ou princípio), “Deus-dará” (Tinta da China, 2016) é um tributo ao dia-a-dia carioca, a um país com vidas e lugares tão diversos no mesmo território: o Rio de Janeiro. É na explosão de sensações, em que a qualquer momento tudo pode acontecer, que Alexandra Lucas Coelho leva o leitor no caminho de descoberta de sete personagens, ou não fosse o subtítulo desta obra tão extenso (“Sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro ou o Apocalipse segundo Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel & Noé”). Com o Rio a marcar presença em cada capítulo e em cada página deste livro, as sete personagens são apenas sete figurinos retratados ao pormenor: cada leitor, com as suas características pessoas e vivências, identificar-se-á com a história de cada personagem.
Em cada capítulo há desfile das vivências, sensações e passado de cada um. De Inês “pouco se sabe do que faz no Rio de Janeiro”, para além de querer aprender sobre a história dos libaneses no Brasil, enquanto os irmãos Zaca e Judite, pólos totalmente diferentes e filhos de estudantes de indígenas, têm a capacidade de prender o leitor pelas suas vidas tão diferentes. Com uma “fraca percepção do abismo”, este ponto cego que pode limitar o seu exercício de advocacia criminal, Judite é provavelmente a personagem que brilha pela diferença em relação a todas as outras, nem que seja, a determinada altura, pela simples capacidade de apaixonar o narrador (“Ex-aluna de colégio de freiras, Judite dispensa qualquer espécie de personal trainer, na academia como na paróquia. Achou a sua trindade: saquê gelado, terreiro de umbanda e o sexo como acesso ao que será que será”). Já Zaca é conhecido como como o autor do “maior sambista brasileiro”, mas não consegue escrever o tão prometido grande romance brasileiro. É com ele e com as suas fotografias, mostradas ao longo do livro, que uma parte da história do Brasil é dada a conhecer ao leitor, com a mesma intensidade com que é dada a conhecer a sua homossexualidade, numa espécie de iniciação já tardia pela sua paixão pelo jovem Orfeu.
Tristão, Lucas, Noé e Gabriel desfilam da mesma forma ao longo das páginas: um para fazer um doutoramento sobre os índios na Amazónia – sendo este um pretexto para dar a conhecer a história da região –, outro como uma vivência pessoal turbulenta, apesar do triunfo que obteve com a sua vida profissional e outros com histórias extremamente bem descritas e colocadas no momento certo – deverá ser o leitor a mergulhar nestes mundos, para conseguir obter o máximo proveito. Das melhores curiosidades que se pode encontrar neste livro da autora é a intervenção do narrador, em vários capítulos, colocando sempre as suas observações em cima da mesa e assumindo um papel de destaque nas últimas páginas. Desenham-se dezenas de lugares do Rio – a certa altura, a escrita de Alexandra torna-se numa obra de arte, percorrida e apreciada pelos olhos do leitor à medida que se sente o seu ritmo –, mas é sempre a partir de um jardim no Cosme Velho que todos os outros sítios brasileiros são apresentados, colocando este “Deus-dará” igualmente como um percurso geográfico magnífico.
“Deus-dará” é um jogo de descoberta sobre o passado entre Portugal e Brasil, que espreita em cada capítulo: da relação entre colonizador e colonizado, no momento em que os portugueses iniciaram este processo de exploração do Brasil, e em que milhões de africanos foram arrastados das suas vidas para trabalharem em terras brasileiras. É, com toda a certeza, uma voz activa para estes detalhes que estão ausentes para todos os que contam as aventuras dos Descobrimentos: a acompanhar a morte de milhares de viajantes, encontra-se igualmente a morte de quem foi escravizado. É um despertar da consciência do leitor: há milhões de pessoas que são resultado desta relação violenta de colonização – de escravização, se formos por uma linguagem mais direta e honesta – e que fazem parte de uma mistura capaz de separar e aproximar estes dois países.
Alexandra Lucas Coelho oferece um livro capaz de separar fronteiras, tornando-o numa das obras que devem permanecer ao longo da história. Não só pelo relato histórico, mas especialmente pela integração cultural – musical, literária, entre tantas outras – em tantas páginas. Da macabra contabilização de vítimas na colonização há uma permanência do que há de melhor a ligar Portugal e Brasil, e a constatação desse facto é a melhor forma de concluir este “Deus-dará”: “E, talvez porque apesar de tudo o que está uma merda Zaca nunca esteve tão feliz, pensa que não tem nenhum lugar no mundo em que os músicos sejam tão divinos, maravilhosos”.
Sem Comentários