Martin Scorsese, que passou um ano no seminário antes de se tornar cineasta, nunca foi indiferente à importância das questões religiosas; temas como o pecado, a culpa ou a redenção perpassam alguns dos seus filmes mais importantes, nomeadamente “Taxi Driver” e “Raging Bull”. “Silêncio” (“Silence” no original) resulta de um projecto aperfeiçoado ao longo de trinta anos e baseia-se em “Chinmoku”, uma obra de Shusako Endo.
Perante a notícia de que o padre Cristovão Ferreira (Liam Neeson) decidira apostatar, vivendo agora com uma japonesa, Sebastião Rodrigues e Francisco Garrpe (Andrew Garfield e Adam Driver, respectivamente) pedem autorização ao superior jesuíta (Ciarán Hinds) para rumarem ao Japão com um propósito em mente: investigar a veracidade de tal informação. O sentimento de incredulidade é bem evidente, já que se trata do seu mentor – alguém imbuído de uma fé aparentemente inabalável. Estamos no século XVII, num período em que as autoridades japonesas recorriam à tortura para combater a expansão do Cristianismo; a mensagem de que o sofrimento dos camponeses seria eliminado numa vida após a morte era demasiado subversiva aos olhos dos responsáveis políticos.
Além disso, Rodrigues vê também nesta viagem uma oportunidade para praticar o “bem”, prometendo a salvação através da fé. Não obstante, não deixa de estar consciente dos perigos que esta missão encerra, já que os relatos das práticas adoptadas sobre os “Kirishtan” (cristãos) não podiam ser mais aterradores: desde água a ferver lentamente derramada sobre homens amarrados na cruz a mulheres envoltas em palha, prontas para morrerem queimadas, tudo serve para os afastar de uma religião que, segundo as autoridades, nunca poderá florescer no Japão: a ilha, dizem, não passa de um pântano. Rodrigues, porém, não se deixa demover, prosseguindo com a sua missão de forma clandestina; parece estar disposto a tudo e até a ideia do martírio é vista como uma forma de se aproximar de Deus.
No entanto, há algo para que não estava preparado: a estratégia diabólica dos inquisidores, que passa por torturar os “Kirishtan” até à apostasia do padre jesuíta. Inflingir sofrimento aos outros é um meio para atingir um fim maior: a abjuração daquele que espalha a fé. A consumação de tal acto é muito simples: basta pisar um objecto chamado fumi-e, onde a figura de Jesus ou de Nossa Senhora se encontra representada – e é quanto basta para pôr termo à dor alheia. Perante tamanho dilema – amar a Deus sobre todas as coisas ou amar ao próximo como a si mesmo -, Rodrigues é consumido pela dúvida. O seu único recurso é a oração, sendo que esta embate constantemente no “silêncio” de Deus – ao ponto de, à semelhança de Cristo, se sentir abandonado. Toldado pela falta de clarividência – não é por acaso que o nevoeiro e a bruma são presenças constantes nesta longa-metragem -, os desígnios divinos parecem cada vez mais insondáveis. Será necessário arregimentar forças para enfrentar um padecimento tão atroz – até ao momento em que uma decisão é finalmente tomada.
Andrew Garfield foi nomeado para o Oscar de Melhor Actor pelo seu desempenho em “O Herói de Hacksaw Ridge”, mas a sua prestação neste filme não é inferior. Muito pelo contrário: graças a ele, e independentemente de sermos ou não crentes, redescobrimos a importância de fazermos ouvidos moucos ao ruído do mundo, já que deve ser a nossa voz interior a guiar-nos o caminho. Afinal, o som do silêncio tem o poder de nos guiar como nenhum outro.
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