Os editores refractários trazem-nos a reedição do clássico “A Máquina do Tempo” (Antígona, 2016), de H. G. Wells (1866-1946). Hoje considerado, juntamente com Júlio Verne, como um dos pioneiros da ficção científica, Wells ajudou a definir os códigos do género em obras como “A Guerra dos Mundos”, “O Homem Invisível”, “A Ilha do Doutor Moreau”, e, claro está, “A Máquina do Tempo”. Mas para além disso foi também um homem socialmente empenhado, preocupado com a direcção do progresso científico e o destino comum da humanidade.
“A Máquina do Tempo” conta-nos a história de um cientista e inventor (o nunca nomeado Viajante do Tempo), que revela a um pequeno grupo de homens (entre os quais o narrador) reunidos em sua casa estar à beira de uma grande descoberta: um engenho capaz de viajar através do tempo. Recebido com desconfiança e incredulidade, o Viajante do Tempo comunica a intenção de experimentar ele mesmo a máquina, perante o cepticismo dos presentes. Na semana seguinte o grupo reúne-se novamente, e o Viajante no Tempo passa a narrar as suas aventuras na quarta dimensão.
Avançamos então em fast-forward para o ano 802.701 d.C., onde o Viajante do Tempo encontra um planeta Terra quase irreconhecível: uma espécie de imenso jardim, pontuado aqui e ali por habitações em ruínas. Trava então conhecimento com os habitantes daquele mundo, os pequenos e frágeis Eloi, de aparência humana mas de débil compleição física e intelecto limitado, que passam os seus dias entretidos em alegres jogos florais e brincadeiras infantis. Quase de imediato a sua máquina do tempo desaparece misteriosamente, pelo que ao não resta alternativa senão procurá-la, enquanto tenta aprofundar o seu conhecimento sobre o mundo do futuro e especular sobre as causas que conduziram a este estado de coisas.
Uma série de interrogações começam a assolá-lo: quem produziu as roupas dos Eloi, tarefa para a qual estes parecem manifestamente incapazes? Porque têm eles pavor da noite, dormindo amontoados dentro de edifícios arruinados? Qual a função dos misteriosos poços que abundam na paisagem? É então que os perigosos Morlocks se dão a conhecer, habitantes do mundo subterrâneo, seres apenas vagamente humanos que durante a noite ascendem à superfície para caçar os Eloi. O Viajante do Tempo compreende então que a espécie humana se diferenciou afinal em duas espécies, e que para reaver a sua máquina do tempo terá de descer ao mundo inferior e enfrentar os Morlocks.
“A Máquina do Tempo” é a primeira abordagem ficcional ao conceito de viagem no tempo. Muitos outros lhe seguiram as pisadas, na literatura e no cinema, explorando as suas múltiplas potencialidades narrativas. Em 1895, ano de publicação d’ “A Máquina do Tempo”, não havia sequer a ciência que abriu as portas da especulação teórica sobre viagens no tempo (Einstein tinha apenas 16 anos). Trata-se, portanto, de uma obra inevitavelmente datada, como a descrição deliciosamente mecânica e antiquada da máquina do tempo comprova (“Dei-lhe uma última pancadinha, testei todos os parafusos outra vez, verti mais uma gota de óleo na biela de quartzo e sentei-me na sela”, p. 49). Contudo, mais de um século depois, podemos compreender melhor a forma intrincada como o espaço e o tempo tecem o nosso universo, mas continuamos a imaginar alavancas e carros voadores para resolver este mistério.
Uma obra de um escritor ainda inexperiente, como o próprio Wells assume num prefácio escrito 36 anos depois, “A Máquina do Tempo” torna-se relevante, não tanto pelo seu valor literário – o estilo é directo, a prosa é funcional, a caracterização dos personagens é incipiente –, mas pelo comentário social que lhe subjaz. Inspirado tanto pela selecção natural de Darwin (Wells tinha formação em biologia) como pela luta de classes de Marx (Wells era um conhecido defensor de ideias socialistas), constitui uma feroz crítica à sociedade industrial da sua época e às desigualdades sociais corporizadas pelo rígido sistema de classes britânico (os proletários Morlocks embrutecidos pelo trabalho, os privilegiados Eloi degenerados pelo ócio), uma temática tão cara à ficção oriunda de terras de Sua Majestade. Os tempos podem ter mudado, mas as extremas desigualdades e o trabalho embrutecedor continuam entre nós, e nesse sentido a actualidade da mensagem não se perdeu nos escombros do passado.
Uma nota para a tradução de Tânia Ganho (sem o trabalho dos tradutores não haveria literatura universal) e para o ensaio introdutório de Manuel Portela, que enquadra e problematiza competentemente a obra.
1 Commentário
Ando a ler uma outra edição da obra. No entanto existe a tendência de ler ou até adquirir o melhor trabalho de tradução, conteúdos e se possível de impressão, design, etc. Muitas vezes é difícil encontrar essa análise de comparação entre diferentes edições. Isso acontece por respeito às outras, por ser uma análise mais difícil, porquê? E como pode o leitor fazer a melhor escolha?
Bom trabalho, o site está muito bom visualmente e com conteúdos interessantes.