“A doença, o sofrimento e a morte entram num bar” (Tinta da China, 2016). Parece o começo de uma anedota épica, mas é algo que nos remete para o título do novo livro de Ricardo Araújo Pereira, que suspende por momentos o papel de humorista e cronista da nação e assume o de um ensaísta, oferecendo-nos “uma espécie de manual de escrita humorística“.
Após um rol de citações que inclui Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman (sim, aquele tipo do boxe), começamos com um “preâmbulo relativamente inútil“, onde, a partir de um texto incrível de Alberto Pimenta, RAP abre com uma das grandes verdades sobre o humor: “O humor é contraditório como o caraças“.
RAP identifica neste manual três teorias essenciais do riso: a da superioridade, que em termos éticos levanta alguns problemas; a da percepção de uma incongruência, resolvida pelo riso; a da frustração da expectativa, que representa a derrota da razão perante os sentidos. Se, na primeira teoria, o riso é sinónimo de apoteose, na segunda é sinal de ruína. Já na terceira, o riso é claramente um modo de aliviar tensões e soltar inibições.
Logo após trazer Freud para dentro das páginas, RAP apresenta o propósito deste pequeno manual, convidando o leitor a juntar-se à festa: “E portanto é assim, sem sabermos bem o que o humor é, que nos ocuparemos dele. Haja coragem.”
Findo o preâmbulo, apresenta-se uma equação matemático-humorística: comédia = tragédia + tempo. Citando Mel Brooks, RAP apresenta outra das grandes verdades da comédia: “Tudo tem graça, desde que aconteça a outra pessoa“. Para RPA, o humor será “uma estratégia para reagir ao sofrimento. Uma espécie de mau perder que leva o humorista, não a adaptar-se ao mundo, mas a afeiçoá-lo a si“. Outra definição bem castiça surge mais para a frente, revelando o humor como “um embuste benigno (enfim, quase benigno), uma vigarice operada sobre a linguagem, um ardil do pensamento“. A função do bom humorista será a de olhar como mais ninguém olha e de ver o que mais ninguém vê, como um estrangeiro no mundo entregue à melancolia.
Entramos depois no território da história humorística, que depende do que é contado mas, sobretudo, da forma como se conta. É aqui que entram as pausas, vistas entre algo inato ou que resulta de muito treino, e uma nova fase desta espécie de ensaio que fala da disposição particular do humorista para entender as pessoas, os objectos e as coisas como se fossem brinquedos. RAP cita aqui James Thurber para nos traçar as diferenças entre o humor inglês e o americano: “Os ingleses tratam o que é banal como se fosse notável, e os americanos tratam o que é notável como se fosse banal“.
Seguem-se muitos outros temas ligados à arte de bem humorar: a capacidade de saber opor uma coisa ao seu contrário – no sentido de introduzir um elemento de caos para perturbar a ordem ou reforçá-la -; o acto de virar uma coisa de pernas para o ar como um acto criador; um olhar sobre as maiores personagens da comédia como “uma espécie de compêndio de excessos”; a repetição na comédia como um sinal de inquietação; a forma como o humor e a religião olham de forma diferente para o lidar com a morte e a finitude – realçando RAP o facto de não haverem registos de que alguma vez Jesus tenha rido; ou a ligação entre riso e morte – sabemos todos que o carrossel irá parar a certo momento mas não deixamos de aproveitar a viagem.
Um livro que mistura humor e erudição, e onde Ricardo Araújo Pereira nos mostra as fundações onde assenta a sua forma muito própria – e genial – de fazer humor. Mesmo com a morte à espreita.
“Não conheço melhor definição do trabalho do humorista. Fazer com que as pessoas se riam desta ideia: por mais que façam, vão morrer. Fornecer-lhes uma espécie de anestesia para esse pensamento. É um ofício belo, nobre, indispensável e inútil: sim, o riso tem o poder de esconjurar o medo, mas só durante algum tempo, talvez apenas durante o tempo que dura a gargalhada. Às vezes, nem tanto.“
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