Desafiante, intenso, improvável e em certos momentos incómodo. Tudo neste conjunto de onze contos. Cada história está impregnada de humanidade, de sentidos mais ou menos subliminares, mais ou menos evidentes, conduzindo à apropriação do sentido e do valor por trajectos não lineares, com curvas e contra-curvas, paragens e arranques, prendendo a atenção. A ironia está lá, viciante e implosiva.
“Dez de Dezembro“, de George Saunders (Ítaca, 2016), apresenta narrativas breves e concisas, contendo um só conflito, uma única acção, unidade de tempo e um número restrito de personagens. O vocábulo conto encaixa aqui na perfeição. A narrativa é curta, compacta e com poucos personagens. Em regra, concentra-se em torno de um só personagem, onde só existe um conflito num espaço de tempo reduzido. A riqueza advém da diversidade dos temas, do estilo de Saunders e do efeito surpreendente reservado para o final, como se tivéssemos concluído um trajecto de reflexão, humor e imprevisibilidade. Histórias de gente que se confronta consigo e com os outros, à procura de sentido para o que sente, faz e deseja.
Alison Pope, a jovem que fazia voltar as cabeças e procurava o rapaz especial, o seu príncipe, acabou por ser salva por Kyle Boot, “o rapaz mais pálido do mundo, que parecia um esqueleto com um mau corte de cabelo“. Um conto que nos conduz ao reconhecimento do valor da beleza, valentia, condicionamento e autonomia. Tudo com muita ironia, pensamentos cruzados, interceptados e aflorados como se de flashes se tratassem. Desafiante.
Em “Paus” reflecte-se a atribuição de valor e a perda de sentido quando deixamos de existir. O Vazio.
“Cachorrinho” é a exacerbação da preocupação materna: “Eles não tinham de sentir o que a mãe sentia; só tinham de ser apoiados naquilo que eles sentissem“.
“Fuga da cabeça da aranha” contém um mix de reflexão em torno do valor e dos limites da ciência, da reabilitação de criminosos e da sua utilização em ensaios de controlo da mente, das emoções e do comportamento.
Em “Al Roosten”, há uma personagem desajeitada, moralmente questionável, com uma percepção distorcida da realidade que fabula e vive num mundo de amor próprio exacerbado.
“Diários das raparigas semplica” revela um homem, uma mulher, filhos, família, expectativas, frustração, pressão e pânico. “Pam e eu debatemos, concordamos: temos de ser como os comedores de pecados, que, no passado, comiam os pecados. Ou o corpo dos pecadores? Comiam refeições dispostas sobre os corpos de quem morrera? Não recordo exactamente o que faziam os comedores de pecados. Mas Pam e eu concordamos: vamos fazer custe o que custar para proteger Eva, não contar nada aos polícias, infringir a lei quando necessário.”
Em “Casa”, Mikey representa o veterano de guerra que regressa a uma vida desprovida de brilho e de sentido. A casa, tal como a guerra, parece materializar o nonsense do combate e do vazio que se segue ao final da batalha.
Ao todo estão reunidas onze histórias neste livro, algumas anteriormente publicadas na imprensa americana entre 1995 e 2009. Roçam muitas vezes o absurdo, ficando o leitor sem saber exactamente do que se está a falar.
“Dez de Dezembro” mereceu o melhor acolhimento, tanto na imprensa como entre pares. Foi finalista do National Book Award 2013 e vencedor do PEN/Malamud Award.
De Jonathan Franzen surge uma das referências mais próximas da sensação final após a leitura das histórias que compõem este livro: “Saunders faz com que o quase impossível pareça surgir sem esforço.”
George Saunders, professor na Universidade de Syracuse, é autor de vários livros de contos, um livro de ensaios e um livro para crianças. Em 2000 foi nomeado um dos melhores escritores com menos de 40 anos pela revista New Yorker. Desconhecido em Portugal até agora, chega-nos de mansinho mas com muita firmeza pela mão da editora Ítaca.
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